Uma vez tendo provado dos lábios da excelência, entregando-se a sua perfeição, como são lúgubres, incômodas e anômicas as horas despertas restantes, aprisionadas no passo travado e agrilhoado do meramente ordinário, do apenas aceitável, do simplesmente razoável e nada mais. Infelizmente, é nesse padrão que a maioria das pessoas vive suas vidas. Conformando-se com o possível, resignando-se com o clichê, pois o sonho altaneiro está em falta
— Harlan Ellison, "Introdução", Sandman: Estação das brumas
Antes de suas Crisálidas, os changelings pairam em uma semi-realidade, veem o mundo assim como as outras pessoas, mas são tocados por lampejos de alteridade. Eles têm visões momentâneas da realidade quimérica sem entender o que veem, ou ouvem sons estranhamente chamativos sem reconhecer suas origens. As vezes, é uma fragrância, um sabor ou até - mesmo uma diferença tátil incongruente com a experiência de outras pessoas. As crianças, novas demais para saber que essas alterações não são ocorrências normais, simplesmente as aceitam. Os jovens e os adultos, mais arraigados no mundo “real”, costumam rejeitar essas experiências por considerarem-nas alucinações e geralmente negam as ocorrências para não serem rotulados de “esquisitos”. Alguns respondem aos estímulos “inexistentes” e acabam entregues à terapia ou aos hospitais psiquiátricos. Mas o que eles experimentam é real... Para os changelings.
Esse mundo ilusório de fantasia é chamado de quimérico, pois os mortais desencantados normalmente são incapazes de percebê-lo. Apesar de ocuparem a carne mortal para evitar a Banalidade, as verdadeiras identidades dos changelings se encontram em suas frágeis almas repletas de Glamour. Como changelings, eles veem o mundo a seu redor de dentro de uma concha. O mundo inteiro tem uma realidade quimérica para as fadas. Não se trata de uma oscilação entre diferentes pontos de vista, do banal para o quimérico, como ver primeiro uma rua com a calçada quebrada e lojas decadentes e, em seguida, com um piscar de olhos, vislumbrar uma avenida dourada delineada por palácios. Não, eles enxergam normalmente a verdadeira alma mágica que existe em cada objeto, pessoa ou lugar. Eles percebem a natureza inerente de pessoas, lugares e coisas, e combinam essas percepções num todo maior.
Portanto, eles não veem o velho livro de contos de fada, todo esfarrapado e com a capa rasgada, mas sim a emoção e o prazer que incontáveis crianças extraíram dessa leitura. Cada criança deixou alguma marca no livro, uma diminuta centelha de imaginação ou inspiração evocada pela obra. Os changelings deleitam-se com esses resíduos visíveis, o que pode fazer o livro parecer novo em folha e avivar suas cores. Da mesma maneira, eles sentem o cheiro de morangos suculentos num prato “vazio”, ou o peso do veludo no que parece ser um uniforme escolar, e dançam ao som de uma sinfonia executada em patinhas de grilos.
Nada além de recibos e lixo baldado; sujos
e velhos registros de ontem e depois;
Mas, bem lá no fundo de um baú maltratado, um
raro coração de papel feito em dois.
— Ruth Comfort Mitchell, "The Vinegar Man"
Quando impregnados de Glamour, os changelings percebem o mundo como um lugar mágico e místico, cheio de coisas incríveis e excitantes. Eles enxergam as coisas do ponto de vista das fadas, uma visão de mundo que dá cor a tudo que os cerca. As árvores deixam de ser simples coleções de madeira e folhas, transformando-se em pilares brilhantes, coroados de verde e salpicados de seiva dourada e vivificante. Além disso, se um changeling usar sua visão feérica para examinar em profundidade a essência da árvore, em busca de sua natureza feérica, pode ser que ele descubra que a árvore é uma criatura onírica adormecida, com os braços erguidos em direção ao céu e os pés plantados na terra cálida. Facas de manteiga podem ser punhais de prata, um velho bicho de pelúcia pode ser um fogoso corcel feérico, e uma velha capa de chuva pode se transformar numa armadura ornamentada. Por não ser capaz de perceber essas coisas, a maioria das pessoas considera as reações dos changelings ao ambiente quimérico como encenação, mímica ou simplesmente loucura.
Há aqueles que afirmam que a realidade quimérica é na verdade uma realidade maior e mais abrangente. Nem compartimentalizado, nem forçado a se encaixar num consenso de “realidade”, esse estado alterado de sensibilidade acolhe com prazer histórias, contos maravilhosos, lendas, mitos, brincadeiras infantis, amigos imaginários, esperanças e sonhos. Também incorpora medos, horrores monstruosos e os mais tenebrosos produtos da imaginação humana. Tudo isso existe na realidade quimérica e é tão real quanto qualquer objeto encontrado dentro das fronteiras do mundo material. Essa “realidade" é tudo o que resta da idade das lendas: um fragmento de Arcádia que persiste na Terra. Como um Rei feérico disse certa vez, “tudo é possível no Sonhar".
Os changelings podem viver num mundo quimérico próprio, mas isso não significa que eles não percebam que também existem numa realidade mais contida. Se assim fosse, eles sequer seriam capazes de dirigir um carro sem sair da estrada. Os Kithain respondem a estímulos que as pessoas mais normais não conseguem enxergar, mas isso não significa que eles ignoram os objetos, as pessoas ou os perigos do mundo real. Os changelings não cavalgam seus corcéis feéricos pelas pistas dos aeroportos, alheios aos aviões que decolam e pousam a seu redor, nem ignoram um assaltante armado.
Isso não quer dizer que eles têm um tipo de visão dupla que lhes permite enxergar o mundo comum e o mágico ao mesmo tempo. Não, o aspecto mágico torna-se supremo, substituindo a realidade material das pessoas e dos objetos com os quais os changelings interagem, mas sem erradicar a presença dos mesmos. E quase como se os corpos dos changelings se lembrassem dos detalhes terrenos enquanto suas mentes enxergam a essência interior que jaz além do comum. Um carro ainda é um veículo a ser dirigido nas ruas, mesmo que, para os changelings, o automóvel pareça emitir um brilho alaranjado e tenha grandes galhadas instaladas no capô.
Os objetos sólidos existem no mundo material e devem ser levados em conta. Isso geralmente causa problemas para os changelings cujos corpos feéricos apresentam mais massa que suas identidades humanas, principalmente os Trolls, cujos corpos quiméricos podem ocupar muito mais espaço que seus invólucros mortais. Nesses casos, um changeling impregnado de Glamour sempre se submeterá a seu Semblante Feérico e fará todos os esforços para compensar a massa maior. Não fazer essa concessão seria um ato equivalente a não acreditar na existência das quimeras. Portanto, um Troll com mais de dois metros de altura é capaz de entrar num fusca, mas isso constitui uma negação de sua existência feérica, e ele, desse modo, estará cedendo à realidade material. Esses atos podem ser perigosos para qualquer changeling, pois recorrer ao mundo comum traz consigo a Banalidade inerente a um ato como esse.