Tempos atrás, antes dos filmes, da televisão, do rádio e dos livros, nós contávamos histórias uns aos outros: histórias sobre a caçada, lendas sobre os deuses e os grandes heróis, épicos e contos trovadorescos sobre monstros vorazes.
Contávamos essas histórias em voz alta, como parte de uma tradição oral, uma tradição que praticamente perdemos.
Hoje, não contamos mais histórias: nós as ouvimos. Queremos ser apanhados e carregados para mundos já prontos. Nós nos tornamos escravos da televisão e do videocassete, deixamos uma oligarquia de criadores de mitos mandar em nossas imaginações.
Mas não precisa ser desse jeito. A narrativa pode ser devolvida a nossa cultura. É disso essencialmente que Changeling se trata: não de histórias contadas a nós, e sim de histórias que contamos a outras pessoas. Por meio do jogo e da arte da narração interativa, criamos novas histórias e reivindicamos como nossos os antigos mitos e as velhas lendas.
Contar histórias nos permite entender a nós mesmos, pois nos proporciona um meio de explicar nossos triunfos e nossas derrotas. Ao examinarmos nossa cultura, nossa família e nós mesmos em novos contextos, compreenderemos coisas que nunca havíamos percebido antes. Contar histórias é divertido justamente por ser um ato tão revelador, e é estimulante por ser tão verdadeiro. Não é à toa que somos fascinados por histórias; quanto a isso não há a menor dúvida.
Changeling é um jogo narrativo, mas também é um RPG (role-playing game, ou jogo de interpretação). O jogador de Changeling não só conta histórias como também atua ao assumir o papel de um dos personagens principais. E muito parecido com o teatro, só que você inventa as falas.
Para entender a interpretação, você só precisa lembrar sua infância e aquelas tardes maravilhosas passadas a brincar de polícia-e-ladrão ou casinha. Você estava representando, estava envolvido num tipo de encenação espontânea e natural que ocupava completamente sua imaginação. Esse brincar de interpretar ajudou você a entender a vida e o que significava ser adulto. Foi uma parte essencial de sua infância, mas você não precisa parar de fazer isso só porque cresceu.
Em Changeling, ao contrário do faz-de-conta, há algumas regras para ajudar você a interpretar. Elas são usadas principalmente para evitar discussões — “Bangue! Bangue! Você morreu!”; “Não, não morri!” — e para dar à história uma sensação mais intensa de realismo. As regras dirigem e guiam o progresso da história, além de ajudar a definir as capacidades e as fraquezas dos personagens.
É possível jogar Changeling com praticamente qualquer número de participantes, mas os RPGs costumam funcionar melhor com seis jogadores ou menos. O mistério e a atmosfera saem perdendo quando os jogadores disputam sua atenção.
As regras essenciais de Changeling são descritas no Capítulo Seis.
Changeling é estruturado de maneira um tanto quanto diferente dos jogos que você provavelmente conhece. Em primeiro lugar, não existe tabuleiro. Em segundo lugar, um dos participantes precisa assumir o papel de Narrador, a pessoa que cria e conduz as histórias.
Ser o Narrador é meio como ser o Banco no Banco Imobiliário, mas traz mais responsabilidades e recompensas do que o simples controle de uma pilha de dinheiro de mentira. O Narrador descreve o que acontece aos personagens em função das palavras e ações dos jogadores. Ele decide se os personagens têm sucesso ou falham, se sofrem ou prosperam, vivem ou morrem. A narração é uma tarefa muito exigente, mas igualmente recompensadora, pois o Narrador é um criador de lendas.
A principal obrigação de um Narrador é garantir a diversão dos outros participantes. Para isso, é preciso contar uma boa história. Entretanto, ao contrário dos narradores tradicionais, o Narrador não conta a história simplesmente: ele cria o arcabouço de uma história e depois deixa os jogadores completarem-no ao assumirem os papéis dos personagens principais.
No caso de Changeling, contar histórias consiste de um equilíbrio meticuloso entre narração e arbítrio, história e jogo. As vezes, o Narrador precisa apresentar o cenário ou descrever o que está acontecendo, mas, na maior parte do tempo, cabe a ele decidir como o ambiente responde aos personagens . Ele tem de ser o mais realista, imparcial e criativo possível.
Como Narrador, cabe a você interpretar e fazer valer as regras, mas você também é um artista e precisa se esforçar para contrabalançar esses dois papéis. Este livro foi escrito para ajudar você a fazer exatamente isso. Ele não facilitará a função do Narrador, pois tal coisa nunca será fácil, mas fará de você um Narrador melhor.
A maioria dos jogadores de Changeling não será composta de Narradores. Essa maioria assumirá os papéis dos personagens principais da história. Ser um jogador não exige tanta responsabilidade quanto ser um Narrador, mas requer o mesmo tanto de esforço e concentração.
Como jogador numa crônica de Changeling, você assume o papel de um changeling, uma criatura feérica inventada e interpretada por você no decorrer de uma ou várias histórias. A vida de seu personagem está em suas mãos, pois é você quem decide o que o personagem diz e faz. Cabe a você decidir quais riscos aceitar ou recusar. Tudo o que você disser e fizer ao interpretar seu personagem terá algum efeito sobre o mundo.
Você também precisa ser um ator. Você fala por seu personagem e representa tudo o que desejar que ele faça ou diga. O que você disser, seu personagem dirá, a menos que você esteja especificamente fazendo uma pergunta ao Narrador ou então descrevendo suas ações.
Como jogador, você tentará fazer coisas que permitam a seu personagem ter êxito e, portanto, “vencer o jogo”. Esse elemento estratégico do jogo é essencial, pois geralmente é isso o que gera a emoção de um momento dramático.
Muitas vezes, após descrever as ações que “você” quer que seu personagem realize, você terá de lançar alguns dados para verificar se seu personagem é capaz de executar com êxito o que você ilustrou com palavras. As Características de seu personagem — números que quantificam os pontos fortes e fracos do mesmo — ditam com que eficácia ele é capaz de fazer certas coisas. As ações são os elementos fundamentais de Changeling, pois são com essas ações que os personagens mudam o mundo e afetam o curso da história.
Os personagens são as peças-chave de uma história, pois alteram e conduzem o enredo. Sem personagens, não há história. São os personagens, e não as decisões do Narrador , quem dirige e promove o desenvolvimento do enredo.
Até certo ponto, todo jogador é um Narrador assistente. Os jogadores devem se sentir à vontade para acrescentar ideias e elementos à história, apesar de o Narrador ter o direito de aceitá-los ou rejeitá-los como bem entender. No final, uma boa história é o objetivo mais importante. Os jogadores e os Narradores trabalham juntos para dar vida a uma história.
Muitos elementos diferentes — tantos que seria impossível separá-los ou identificá-los — compõem o que concebemos como “eu”. Na verdade, não sabemos quem ou o que somos. E dessa diversidade essencial do eu que se origina nosso desejo e nossa capacidade de fingir ser outra pessoa.
Os personagens são as versões literárias de pessoas reais: não são de verdade, mas apreendem, de fato, alguns aspectos da realidade. Seus personagens só estarão completos quando você entrar no mundo da história. Eles só serão reais tendo você como força motriz — a alma, por assim dizer. Trate seus personagens como indivíduos únicos, como obras de arte ou como frágeis expressões de sua sensibilidade poética. Você precisa valorizar os personagens que cria.
É fácil criar personagens de Changeling. Leva-se menos de meia hora para escolher todas as Características que descrevem um personagem. Transformar essa coleção de números num personagem vivo exigirá muito mais tempo e esforço. Você precisará procurar bem lá no fundo de si mesmo a matéria-prima necessária para produzir um personagem completo. Foi fácil montar o monstro de Frankenstein com as partes dos cadáveres disponíveis; difícil foi insuflar-lhe vida.
A criação de personagens é discutida mais detalhadamente no Capítulo Quatro.
Não há “vencedores” em Changeling, pois o objetivo não é derrotar os outros jogadores. Para chegar a “vencer”, os jogadores precisam cooperar uns com os outros. Por este ser um jogo narrativo, não há como uma pessoa reclamar a vitória. Além do mais, o mundo de Changeling está repleto de perigos: quimeras monstruosas, Dauntain implacáveis, a incessante intrusão da Banalidade e as maquinações da Corte Unseelie. Os jogadores não podem se dar ao luxo de competir com os colegas, pois isso tem como consequência a morte dos personagens. E a única medida de sucesso em Changeling é a sobrevivência.
Se, entretanto, o personagem tiver alguma motivação irresistível (como a necessidade de vingança), cumprir essa meta também se transformará numa medida de sucesso. As histórias e as crônicas geralmente terminam beneficiando ou prejudicando os personagens. Se os jogadores conseguirem tirar vantagem da história em prol de seus personagens, eles terão “vencido”, ao menos momentaneamente. Quando um grupo de changelings encontra um meio de resgatar um companheiro capturado por um Dauntain, pode-se considerar que esses changelings obtiveram uma vitória temporária. Entretanto, se o Dauntain tiver amigos poderosos no submundo, atacar esse indivíduo pode se transformar num risco a longo prazo. Uma “vitória” nessas circunstâncias pode se tornar pior que a derrota.
Para alcançar a vitória, mesmo que parcial, os personagens geralmente precisam se tornar amigos ou, no mínimo, tomar conta uns dos outros e demonstrar um pouco de confiança mútua. O Mundo das Trevas é um lugar perigoso e os aliados de confiança são essenciais. Um grupo dividido não sobreviverá muito tempo.
Changeling foi desenvolvido para ser jogado ao redor de uma mesa. Apesar do jogo não exigir um tabuleiro, alguns acessórios precisam de uma mesa. Dados, lápis e fotocópias da ficha do personagem são os únicos itens necessários. Os dados têm dez faces e você pode adquiri-los em qualquer loja especializada. Pode ser que o Narrador também precise de papel (para esboçar o cenário, o que facilita a descrição) e alguns outros acessórios para mostrar aos jogadores o que os personagens estão vendo (fotografias, fósforos, cachecóis: qualquer coisa que torne a experiência mais vívida).