Cuidado! Algumas fadas morrerão se você ler isto em voz alta. Explicar racionalmente uma criatura do Sonhar não é muito diferente de desacreditá-la. No entanto, como estamos tratando de seres fantásticos que brotaram da imaginação de outros povos, a explicação se faz necessária.
Verter para o português todo um vocabulário relacionado à cultura feérica é uma verdadeira demanda. Na maioria dos casos, não existem traduções consagradas nem equivalentes folclóricos aceitáveis em língua portuguesa. Um Redcap não é exatamente um “barrete vermelho”, e muito menos o “bicho-papão”. As soluções possíveis seriam cunhar neologismos ou manter os termos e as expressões no idioma original. A primeira saída sacrificaria as referências culturais, e o sabor exótico das lendas britânicas se perderia na tradução. A segunda sacrificaria um pouco a compreensão.
A edição brasileira de Changeling: o Sonhar optou por preservar a atmosfera lendária e aliviar o problema da compreensibilidade com notas explicativas. No entanto, por se tratar de um manual de RPG — algo que nenhum Narrador ou jogador lê linearmente — as notas teriam de ser inseridas e reinseridas à primeira aparição do termo em cada seção. Para evitar essa poluição “notaria”, decidimos concentrar as explicações mais necessárias neste prefácio nada glamoroso.
Comecemos pelo próprio título. O changeling das lendas era uma criança feia ou de mau gênio que teria sido supostamente trocada ao nascer. O bebê mortal era levado para a terra das fadas e um substituto feérico ficava em seu lugar. A formação da palavra já indica essa ideia de troca — change + ling, ou “criança trocada”. Os autores de Changeling: o Sonhar vão além e associam os changelings à noção de mudança e inconstância que, em inglês, também se traduz por change (confira a página 52).
É grande a tentação de traduzir Seelie e Unseelie respectivamente por “Visível” e “Invisível”, mas inúmeras fontes atribuem outros significados a essas palavras. A Seelie Court seria a “Corte Abençoada” e, por conseguinte, teríamos a “Corte Ímpia” como contraparte. De qualquer maneira, esta edição optou por apresentar as duas grandes divisões das fadas como “Corte Seelie” e “Corte Unseelie”.
As raças de changeling são chamadas Kith e os mortais aparentados às fadas são tratados por kin. A expressão kith and kin significa algo como “amigos e parentes” e, portanto, a tradução dos dois termos isolados não seria muito complicada. A questão é que os protagonistas de Changeling: o Sonhar se referem a si mesmos como Kithain e a seus parentes como Kinain. Por uma questão de coerência, se traduzíssemos kith por “amigos”, ou “turma”, teríamos de cunhar um termo extremamente artificial para fazer referência à espécie dos changelings, algo como “turmain” (aaargh!). Portanto, kith e kin foram mantidos no idioma original para que Kithain e Kinain fizessem algum sentido. O mesmo princípio vale para Dauntain, palavra cunhada pelos autores a partir de daunt, que significa intimidar ou amedrontar, e o sufixo -ain.
E, por falar nas raças feéricas, vertemos para o português apenas Satyr (Sátiro) e Eshu (Exu), por motivos óbvios. Entre os demais Kith, os únicos que talvez precisem de uma breve explicação são os Nockers e os Redcaps. Os Nockers, ou Knockers, eram duendes ou anões que conduziam os mineradores até os veios por meio de pancadas na rocha (“knock”, em inglês, significa pancada ou batida). Em Changeling, a explicação para o nome do Kith é um pouco diferente, mas também está relacionada ao hábito de bater nas coisas. O Redcap, que provém do folclore escocês, era um espírito maligno que assumia a forma de um velho de unhas compridas e barrete manchado de sangue, daí o nome.
Com raríssimas exceções, mantivemos os nomes próprios no idioma original, mesmo quando eram absolutamente traduzíveis, como no caso de Surefoot ou Starguided. Cabe aqui uma menção especial às localidades apontadas no mapa de Concórdia. As grandes cidades norte-americanas foram renomeadas à moda das fadas. Os autores associaram Caer, que é um elemento de composição comumente encontrado na toponímia galesa, a uma palavra que caracteriza um aspecto geográfico ou cultural da região, seria injusto e pouco elegante transformar Caer Redwood, por exemplo, em “Sequoiápolis” ou coisa pior.
Por último, é costume grafar as palavras de origem estrangeira em itálico, mas optamos por não empregar esse recurso com os termos próprios do cenário de Changeling. Tantas palavras foram mantidas em sua forma original que, se utilizássemos o itálico para diferenciá-las, certas páginas teriam uma aparência inclinada demais.
Esperamos que vocês desfrutem Changeling: O Sonhar tanto quanto nós adoramos publicá-los. A todos vocês, uma boa leitura e um jogo melhor ainda melhor!
Devir Livraria
Reproduzir ou aproximar a pronúncia de palavras de origem estrangeira usando apenas o alfabeto em português não é uma tarefa fácil, mas nós tentamos. No “Capítulo Três: Os Kithain”, vocês encontrarão entre colchetes a pronúncia aproximada dos nomes dos Kith ocidentais. Apresentamos aqui as convenções utilizadas:
Na medida do possível, os sons foram reproduzidos com o alfabeto comum.
As sílabas em caixa alta representam as “tônicas”, por assim dizer.
Os acentos só indicam se o som das vogais é fechado ou aberto.
O símbolo [ ʁ ] foi empregado para indicar o som do “R caipira”, como este é pronunciado na palavra “porta”, principalmente no interior do estado de São Paulo.