Eu já fui uma filha da primavera. Essa época me parece tão distante agora.
Quando eu era uma garotinha, minha mãe me deixava brincar no seu jardim. Aquilo, pra mim, era o paraíso. Os botões de rosas eram meus melhores amigos. Eu podia confiar neles. Nas tardes de primavera eu lia historias para as flores. Eu não conhecia todas as palavras nos livros que eu pegava emprestado da biblioteca do meu pai, mas eu era capaz de criar infinitos floreios nas historias que contava. Não importa o quão elaborado os contos se tornavam, as rosas ouviriam atentamente. Borboletas planavam próximas para ouvir, e elas se alegrariam na beleza de tudo.
Aqueles dias de primavera foram os mais felizes da minha vida. Cada dia ensolarado era cheio do prazer da juventude, e minha exuberância era tamanha que sentia que eu quase podia quase voar. Quando uma brisa de primavera soprava pelo jardim, eu me lembro de ter desejado por asas que me levassem com o vento.
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Meu pai sempre me ensinou o valor do trabalho duro. Ele queria que seu filho fosse capaz de prover para sua família. Eu nunca pensei que tivesse que aprender tanto, mas ele me ensinou tudo que eu precisaria saber. Na oficina, nos trabalhamos por horas. A única qualidade que eu me lembro dele era a paciência. Ele nunca conseguia expressar como se sentia em palavras, mas o fato de que ele gastou tanto tempo me ensinando carpintaria dizia mais do que qualquer palavra que ele poderia escolher.
Ele sempre foi metódico em relação ao seu trabalho. Para ele, o artesanato era a coisa mais importante no mundo. Aprender isso leva um tempo. Quanto eu tinha 5 anos, os pregos que eu martelava sempre ficavam tortos e o pedaço de tabua que eu cortava com minha serra de treino nunca ficava preciso. Ele sempre foi paciente, entretanto, e me ensinou que quando você começa alguma coisa, não deve deixar nada te distrair ate terminar.
Ele cuidadosamente media cada peca de madeira que usava. Ele me ensinou a usar o lápis cuidadosamente, de maneira que minhas marcas nunca estariam erradas por mais que 1/16 avos de polegada. Trabalhar com madeira foi uma das coisas que mais me deram prazer na minha vida. Cada vez que eu olho alguma coisa que eu construí com as minhas próprias mãos, eu imagino as mãos dele guiando as minhas.
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Eu fui uma jovem muito impaciente. Embora eu fosse repetidamente castigada, eu não conseguia evitar fugir pela janela do meu quarto nas noites quentes de primavera. Com a furtividade de um animal noturno, eu descia pela arvore ao lado da minha janela e fugia. Descalça, eu corria infinitamente pelo luar. No meio da noite, eu retornava.
Meu quarto era uma prisão. Eu arrumava os meus bichos de pelúcia no peitoral da janela, e eles assistiam ao luar comigo. A luz da lua repousava como um beijo de um enamorado sobre a montanha, e eu desejei muito andar por esse chão gentil.
Com dezessete anos, eu fugi de casa.
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Eu consegui meu primeiro trabalho com dezesseis. Meu pai tinha me ensinado direito. Ele era um homem muito tradicional – eu aprendi que um homem de família deve ser capaz de prover. Por causa disso, eu trabalhei duro para que ele se orgulhasse. Eu sabia que um dia, eu teria minha própria família, e que o meu trabalho duro a sustentaria. Todo dia depois da escola, eu ia para o meu trabalho na madeireira. Checar o inventario não era o emprego mais excitante no mundo, mas eu aprendi a depender disso. Eu economizei para o meu primeiro carro – um Plymouth 1978 branco. Não era nada espetacular, mas eu o havia conseguido por mérito próprio. Ele era meu.
Com dezoito, eu coloquei o meu diploma do colegial na minha mala, carreguei meu carro com tudo que eu precisava para minha nova vida, e mudei para a Califórnia.
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Eles me encontraram num estacionamento da Seven Eleven. Os rasgões, lágrimas e manchas nas minhas roupas me faziam parecer mais uma fera que uma garota de dezessete anos. Eu me tornei uma sem-teto durante várias semanas, e meu sonho lentamente virava um pesadelo. Correndo de cidade em cidade, minha jornada tinha me levado de Albuquerque para Tucson até San Diego, e por todo o norte da Califórnia. O dinheiro que eu roubei dos meus pais estava se esgotando, e a viagem estava lentamente me destruindo. Pias de banheiro não eram bons substitutos para um bom chuveiro, e a mudança que eu experimentei nas ruas não era o bastante para uma comida decente.
Os três estranhos que me encontraram eram andarilhos também, mas eles tinham viajado bem mais que eu. Se eu me concentrar um pouco posso me lembrar de suas faces.
Jack era alto. Ele caminhava com um curvar perpetuo, e ele era gentil. Ele usava uma jaqueta jeans com um brilhante por do sol bordado nas costas, mas ele raramente sorria. Runcible era eloquente, ainda que dissimulado. Ele tinha algo de ladrão, mas do tipo sofisticado. Sua perspicácia era ainda melhor lapidada que suas capacidades de conseguir o que precisávamos, e as canções dele sempre me fizeram rir. O terceiro membro de nosso grupo era um jovem punk chamado Arthur. Nos o chamávamos de Lábios de Peixe. Ele tinha uma tatuagem de um peixinho do seu pescoço. Ele parecia com os punks que eu via no inicio dos anos 80, e orgulhava-se de sua amargura.
Arthur Lábios de Peixe tinha um furgão, uma monstruosidade verde-limão que ele cuidava como um melhor amigo. Nós éramos todos melhores amigos. Nós tínhamos que ser. Nós vivíamos perto do limiar e tomar conta de um amigo é a melhor maneira de manter a amizade.
Quando nós finalmente ficamos sem grana pro combustível, nós paramos numa casa com um grupo de estudantes perto da pequena universidade de Santa Cruz. Jack, Runcible e Arthur queriam descansar um pouco. Em breve, eles considerariam a cidade seu lar, mas para mim, o meu lar sempre foi a estrada aberta. Eu economizei algum dinheiro, e depois disso, eu me certifiquei de ter combustível no furgão. Quando desejávamos, fazíamos uma rápida viajem pela Estrada da Costa Pacifica e cantávamos com a música do rádio.
Meus três amigos eram a minha brisa de primavera, e finalmente eu obtive as minhas asas.
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O apartamento pelo qual eu economizei era pequeno, mas era meu. Dez horas por dia, eu trabalhava numa construção no centro. No fim de cada dia, eu estava exausto. Todo dia, eu me esforçava para provar meu valor. A única coisa que me fazia continuar era pensar na minha próxima promoção.
O dinheiro era curto, mas nos fins de semana, eu dirigia para a praia e fazia longas caminhadas. De noite, o balanço perto da praia movia-se gentil para trás e para longe pelo vento, e a o cheiro do mar podia alastrar-se através da areia.
Numa noite quente de verão, eu a encontrei.
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Toda noite, o resto do meu grupo se reunia ao redor de uma fogueira. Eu não sei por que. Nós fazíamos algum tipo de ritual desde quando chegamos, e nos encontrávamos ali após cada uma de nossas jornadas. Toda noite, meus amigos discutiam.
Uma noite, quando eles começaram a gritar uns com os outros novamente, eu fugi da casa para ficar sozinha. Seus argumentos sempre pareciam tão triviais pra mim, talvez nós apenas estivéssemos passando tempo demais juntos. Eu acho que Arthur tinha ciúmes de que eu passava muito tempo com Jack. Eu podia sempre perceber a afeição dele. Ele era muito tímido, mas a sua bondade estava em tudo que ele fazia. Arthur sempre estava furioso, e eu acho que ele não podia entender porque eu não queria passar meu tempo tentando curar sua amargura sem fim. Runcible nunca levava nada a sério, e eu nunca podia ter certeza se o que ele dizia era verdade.
O grupo estava tendo problemas, e eu senti a necessidade de estar livre novamente.
Depois de andar ao lado do oceano, eu encontrei um balanço na praia. Eu corri. Era como se eu tivesse doze anos de novo. Eu queria saber o quão alto ele podia chegar. Enquanto eu era carregada através da brisa marinha, eu sonhei acordada com o balanço me levando para um lugar em que eu pudesse ficar sozinha. Talvez eu encontrasse alguma ilha por lá, um lugar onde eu poderia pensar nos meus sentimentos. Eu sonhei com um paraíso tão real quanto o jardim da minha mãe, e sonhei com a brisa tropical me levando pelo mar. Fechei meus olhos.
Escorreguei.
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Ela ria, enquanto o balanço a levava para alturas impossíveis. Era como se ela não se preocupasse com sua própria segurança. Ela pareceu quase se libertar do chão, como se algo dentro dela não pudesse ser preso à gravidade.
Eu estava pasmo. Ela simplesmente não podia existir. Sua risada era irreal. Senti inveja da felicidade que ela radiava, e senti admiração pela aura de liberdade que ela carregava ao seu redor. Com isso veio o desejo de protegê-la, de prevenir que se machucasse.
Ela caiu.
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Eu estava sangrando na areia. O aroma do oceano pendurado opressivamente no ar. A dor fez meu rosto contorcer-se, e minha pele arranhou quando tentei remover a areia do sangue que manchava meu vestido de algodão.
Ele impediu minhas mãos.
Cuidadosamente, ele pegou um lenço de seu bolso de trás e o enrolou no corte do meu braço. Sem palavras, ele me levou até o seu carro. Metodicamente, ele pegou um kit de primeiros socorros no porta luvas, e cuidadosamente colocou no corte.
Meu coração parou. Eu olhei docemente, sorri e tirei os cabelos de seus olhos. Foi quando eu vivenciei o mais longo e profundo beijo da minha vida.
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Três meses depois, eu acordei no meio da noite e me virei para vê-la dormindo ao meu lado. Tudo parecia tão impossível. Como algo tão maravilhoso assim aconteceria comigo? Ela era descuidada e imprevisível, irresponsável e inconstante, mas toda noite, nos dormíamos na mesma cama no meu apartamento barato. Toda manhã, meu primeiro pensamento era como eu era sortudo por acordar ao seu lado.
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Cada dia era tão feliz. Cada ação que eu tomava a cada dia vinha do meu amor por ele. Eu estava obcecada. Quando eu cozinhava arroz para o jantar, eu pensava quão maravilhoso o próximo jantar a luz de velas seria. Quando eu separava suas meias para lavanderia, pensava como deixariam seus pés aquecidos.
Quando eu lavava os lençóis, eu não parava de sorrir.
As vezes eu pensava nos meus amigos de Santa Cruz, mas ficava cada vez mais difícil lembrar seus rostos conforme os meses iam passando. Num dia úmido de verão, eu me peguei na janela, observando o horizonte.
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Eu não sei onde errei. Todo dia, eu voltava do trabalho. Todo dia, eu ficava feliz por vê-la em casa. Isso parecia perfeitamente natural para mim. Eu comprava pequenas coisas para fazê-la feliz. Guardei dinheiro para o aparelho de som, terminei de pagar a televisão, e ia com ela ao shopping para comprar mais coisas para o nosso apartamento. Eu queria lhe prover uma casa que a fizesse feliz.
E todo dia, ela parecia mais desconfortável. Eu ainda tinha esperanças que as coisas poderiam melhorar. Por que não estava funcionando? Eu pensava nos meus pais, seguros depois de 30 anos de casados na sua casa no Colorado. De alguma maneira, isto não era a mesma coisa.
Ficamos frios. Sentávamos na mesma sala, um tentando não ouvir a respiração do outro. Os jantares a luz de velas deram lugar aos jantares na frente da TV, e as noites de romantismo, às comédias na TV e cansaço.
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Dez anos depois, eu sento perto da janela e olho para o quintal dos fundos. Ele gasta mais e mais tempo fora de casa. Nosso primeiro ano juntos parece outra vida. O jardim de rosas que eu plantei está brigando para sobreviver. Por anos, eu tentei de tudo para ajudá-lo, mas eu não tenho o mesmo dom que minha mãe.
Quando eu olho para fora da janela, eu tenho dificuldades para me concentrar. Geralmente, isso não dura muito tempo antes do telefone tocar, ou do bebê chorar. A televisão no canto mantem minha solidão distante.
Eu nunca sei quando ele volta pra casa. Várias vezes ele fica fora até tarde, e eu nunca sei quando ele voltará ou não bêbado.
Eu assisto as folhas de outono cair perto de minha janela e tento me lembrar dos rostos dos meus velhos amigos.
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Eu lhe dei tudo que pude. Mesmo quando eu realmente digo que a amo, isso faz pouca diferença. Se eu não a amasse, como ela explicaria todos os anos que eu passei economizando para nossa casa? Como ela explicaria tudo que eu lhe dei? Fiz tudo que meu pai me disse, e tentei deixar minha casa como a dos meus pais. Nada lhe fazia feliz.
Eu estou bêbado, mas estou me aquecendo. Eu esmago as folhas de outono abaixo dos meus pés enquanto cambaleio pela noite. Eu não quero voltar para casa.
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Jack veio aqui na noite passada.
Eu não o via há dez anos. Ele andava com o mesmo curvar que sempre teve, e seu cabelo ainda lhe cobria os olhos. Havia algo estranho com ele.
Ele parecia não ter envelhecido um dia.
Eu lhe ofereci uma taça de vinho e o convidei a entrar. Ele sentou apreensivo no sofá, como velhos amigos frequentemente fazem quando se visitam, e ele perguntou da minha vida. Eu contei a ele. Quando eu era uma garotinha, eu sonhava em ter um jardim de rosas, mas agora as rosas não cresceram. Eu queria viver numa ilha tropical, mas os ventos tropicais nunca me levaram embora. Eu achei que eu seria feliz, mas agora eu não tinha nada no jardim, com exceção de pilhas de folhas secas.
“Por quê?” Eu perguntei: “Por quê?”.
Ele respondeu. Devagar, ele andou até mim e percorreu sua mão pelas minhas costas.
O copo que eu segurava caiu no chão e quebrou. Então meu velho amigo Jack cuidadosamente virou-se e foi embora.
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Em noites solitárias, eu fico ao seu lado, mas eu estou sozinho. No meio da noite, ela levanta e vagueia até a janela. Vai até o corredor, longe de mim. O vento gelado sopra pela janela do quarto, e eu durmo de novo.
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Em noites solitárias, quando ele está dormindo, eu observo o silêncio da minha prisão. Estou aprendendo a ser silenciosa. Quando eu roubo sorvete do congelador no meio da noite, quando eu ligo a TV as 3 da manhã, quando eu decido rastejar pelo sótão, eu caminho descalça no chão gelado, sem ousar fazer barulhos.
O sótão e o lugar onde eu posso me lembrar de coisas que deixei de lado. No meio da noite, eu sento lá e deixo as lágrimas rolarem por minha face. Eu mantenho caixas com minhas antigas coisas lá, e quando olho os vestígios da minha juventude, me lembro do meu passado.
Um dos tesouros que eu guardo está numa caixa branca. Quando eu preciso lembrar do passado, eu abro aquela caixa, tiro o papel de seda, e olho o interior. A memória da minha juventude volta. E eu consigo lembrar dos rostos dos meus velhos amigos.
Dentro da caixa, repousam duas folhas etéreas no papel de seda como borboletas frágeis. Elas me lembram que o vento nunca virá novamente. Elas me lembram do sacrifício que eu fiz por meu amor.
Sento-me, e choro, e percebo onde deixei minhas belas asas.