Era uma vez, numa terra não muito mágica chamada Subúrbio, um garotinho perfeitamente comum de nome Justin. Justin vivia com o pai e a segunda esposa deste numa casa térrea, com guarnições de alumínio branco, gramado, três sicômoros e uma entrada para carros que o pai de Justin costumava retocar a cada dois anos. O quarto de Justin ficava nos fundos e tinha duas janelas; ele decorava as paredes com ilustrações de dinossauros. A madrasta de Justin não gostava muito das figuras e dizia que as paredes do quarto deveriam ser inteiramente brancas; mas o pai deixava Justin ficar com os dinossauros. Era melhor assim, dizia o pai, do que tentar manter as paredes brancas e então chegar do trabalho um dia desses e descobrir que Justin cobriu-as com dragões e cavaleiros desenhados a giz. Pelo menos era o que Justin alegava que os desenhos eram. Para falar a verdade, pareciam mais rabiscos vermelhos e verdes, ou talvez macarrão supercolorido, mas, para Justin, eram dragões. E os dragões, assim como a beleza e a magia, estão nos olhos de quem vê.
A mãe de Justin havia morrido quando ele era bem pequeno. O pai, que se chamava Jake, voltara a se casar logo depois, quando o filho era só um pouquinho maior e, portanto, Justin mal se lembrava da mãe. A madrasta, Leah, parecia não gostar muito dele e, às vezes, Justin a ouvia discutir com o pai. Nessas noites, Justin fechava a porta do quarto, cobria a cabeça com um travesseiro, fingia não ouvir e desejava estar em algum outro lugar. De vez em quando, ele desejava estar na terra dos dragões desenhados, mas, na maior parte das vezes, ele só queria estar em qualquer outro lugar.
Havia um outro garotinho no quarteirão de Justin, e seu nome era Devin. Devin e Justin eram muito amigos, o que é interessante pois eles eram completamente diferentes em várias coisas. Justin era alto e desajeitado, tinha cabelos louros e olhos azuis, enquanto Devin era baixinho e ágil, de pele morena e cabelos pretos. Justin e Devin faziam tudo juntos: apostavam corridas com seus triciclos e Tonkas, cavavam buracos no quintal, exploravam os mistérios da Esquina, criavam ilustrações e assistiam a desenhos animados. Tudo, enfim. Às vezes, Justin tinha a sensação de que a madrasta não apreciava essa amizade com Devin, mas ele não se importava.
Por isso, foi com Devin que ele conversou quando começou a ver coisas: asas de borboleta e rostos curiosos espiando de dentro das árvores. Devin disse a Justin que também ele via essas coisas já havia algum tempo. Depois disso, sempre que viam uma aparição mágica, eles sorriam e a mostravam um ao outro. Era mais um segredo para dividirem.
— Mas, disse Devin, você não pode contar isso a seus pais, senão alguma coisa ruim vai acontecer.
— O que eles fariam? Perguntou Justin.
— Sei lá, disse Devin, mas sei que não seria nada bom.
E ele foi para casa meneando a cabeça, pois já sabia que Justin não conseguiria guardar segredo.
É claro que Justin esqueceu o aviso de Devin e contou ao pai o que tinha visto. No mesmo instante, Justin percebeu haver cometido um erro. Mais tarde, naquela noite, ele ouviu o pai conversando com Leah. Eles usaram palavras que ele não conhecia, como "terapia" e "internato". Ele reparou que Leah as citou várias vezes.
No dia seguinte, o pai disse a Justin que ele iria para uma escola nova, longe de casa. Justin perguntou se Devin iria com ele, mas o pai respondeu que não.
— Essa aventura é só para você, ele disse.
E, assim, Justin foi para a escola longe de casa. No entanto, as visões de coisas estranhas e mágicas... elas não desapareceram.
Ele via mais e mais delas a cada dia. Ele devaneava por um momento e, de repente, sua professora ficava azul, tinha quase três metros de altura e.… chifres! Ou então, tarde da noite, depois de apagarem todas as luzes e de o mandarem dormir, Justin ouvia as estranhas vozes dos Monstros Debaixo da Cama que conversavam em segredo.
Mas Justin havia aprendido a lição. Dessa vez, ele não contou a ninguém.
Então, um dia, no playground, Justin viu algo maravilhoso e terrível. Enquanto brincava com as outras crianças, ele ouviu passos imaginários tão retumbantes quanto o trovão. Por fim, não era mais possível ignorá-los. Ele olhou para cima e viu todos os seus sonhos e pesadelos realizados: um dragão! Era verde e dourado, e, onde a luz do sol cintilava em suas escamas, o brilho era tão intenso que chegava a ferir os olhos. O pescoço era fino e comprido; as garras, enormes e afiadas; e o rugido, forte o suficiente para fazer chover.
Justin pensou ser o único a ver o dragão, mas sua professora também o viu. A Sra. Lombard correu até onde estava o dragão, e Justin viu que a professora vestia armadura e tinha nas mãos uma espada imensa e tão brilhante que chegava a lampejar. Nenhuma das outras crianças viu, mas Justin assistiu ao combate entre a Sra. Lombard (que estava azul, é claro; Justin já esperava por isso) e o dragão. Golpes e contragolpes, brados desafiadores: extasiado, Justin assistiu a tudo.
A Sra. Lombard venceu a batalha e o dragão virou-se para fugir. Sangrando devido a vários cortes, ele se voltou pouco antes de desaparecer e pronunciou duas palavras, "Eu voltarei", ele disse, e em seguida sumiu no milharal que ficava logo depois do distante campo de futebol. A Sra. Lombard embainhou a espada e voltou para junto de seus alunos. Ela pareceu bastante surpresa quando Justin foi até ela e disse:
— Eu não sabia que os dragões falavam.
Mais tarde, naquela noite, enquanto todos os outros dormiam, Justin estava sentado na cama. Ele sabia que era importante ficar acordado, assim como Devin soubera, tanto tempo atrás, que seria tolice não guardar segredo. Em silêncio, ele se vestiu e esperou a porta se abrir.
Ele só teve de esperar alguns minutos. A Sra. Lombard, bela e impassível em sua armadura, veio buscá-lo. Ela não chegou a se surpreender ao ver que Justin a esperava, e ele, por sua vez, não estava surpreso ao ver que sua própria pele tinha a cor do céu.
— Venha comigo, ela disse, e ele foi.
Lá fora, no corredor, estavam esperando outras duas pessoas, trajadas como a Sra. Lombard e com a mesma aparência, envergando armaduras, sisudas. Elas se posicionaram à frente e atrás de Justin e recusaram-se a pronunciar uma palavra sequer. Entretanto, de alguma maneira, ele sabia que o homem que marchava a sua frente era o Sr. Simms, o zelador, e que a mulher atrás de si era a Sra. Loveless, a professora de ginástica das meninas. E, muito embora ninguém dissesse uma palavra nem ao menos dedicasse a ele um olhar benévolo, Justin sentia uma alegria secreta a se agitar nos três que formavam sua escolta.
Eles o levaram para fora do prédio, noite adentro, e vaga-lumes surgiram do nada para iluminar o caminho. Eles atravessaram o pátio, o campo de futebol e os titubeantes talos de milho. Por fim, eles chegaram a um lugar que Justin nunca tinha visto antes, onde o riso e a música anunciaram sua chegada.
Na orla do bosque estava a coisa mais maravilhosa e terrível que Justin poderia imaginar. Sentado num trono de vidro, que cintilava como se contivesse milhares de estrelas, estava o homem mais belo que Justin já tinha visto. Os cabelos do homem eram negros e finos, e sua face era esguia e pálida. Sua armadura era negra e dourada, e uma espada desembainhada, delgada como um murmúrio, repousava em seu regaço. Na fronte, ele trazia um delicado diadema de ouro, com uma única gema verde incrustada.
Ao redor do trono saltitavam dançarinos, mulheres e homens graciosos como o do diadema. Num círculo mais amplo, rodopiavam outros dançarinos, mas Justin nunca vira nada igual a eles. Homens com feições de animais bailavam com elegantes mulheres de pele morena, e músicos feéricos produziam sons capazes de fazer o próprio bosque dançar. Crianças solitárias, magras, tristonhas e usando adereços esfarrapados valsavam enquanto o vinho era servido e entoavam-se canções. Lanternas brilhantes pendiam de todos os ramos das árvores, e da própria relva parecia brotar um orvalho da mais pura prata.
Os dançarinos deram passagem a Justin e sua escolta, sem que a música sequer vacilasse. Os quatro caminharam até o pé do trono, e o homem nele sentado os saudou.
— Bons olhos os vejam, disse ele, e sejam bem-vindos você e seu pupilo, Anneke.
— Rezo para que ele sempre aqui encontre acolhida, Duque Hamish, pois creio ser ele uma alma antiga e de grande nobreza, respondeu a guerreira.
— Veremos o que o futuro tem reservado para ele, Anneke, disse o Duque. — Mas há um outro assunto mais urgente
— Qual seja, Alteza? -
— Soube de fonte limpa, disse o Duque, indicando com a cabeça duas crianças pálidas que usavam vestidos esvoaçantes e valsavam a alguns metros dali, que você, sozinha, enfrentou e derrotou um poderoso dragão quimérico hoje, e que você o fez sem o auxílio de truques nem encantamentos, somente com a força da espada e do braço. Isso, disse ele, levantando-se, é um feito nobre! Para honrar você e seu feito, Anneke, declaro esta noite uma noite de festa! Que todos aqui cumulem você de louvores e presentes, pois você os merece. E, como acima de mim não há mais ninguém, concedo-lhe o primeiro presente desta noite. Pajens!
De trás do trono saíram dois jovens, esbeltos e imperiosos como seu mestre. Traziam nos braços um grande escudo que brilhava feito prata e ostentava as formas de inúmeros animais. Os pajens levaram o escudo até Anneke, que o recebeu. Eles se curvaram e voltaram a desaparecer nas sombras.
— Este escudo foi tomado de um campeão Troll durante o furor da Guerra da Harmonia, Anneke, e sobre ele foram lançados encantos e feitiços. Você fez jus à devolução do escudo a sua gente e ao conhecimento dos poderes que ele encerra. Dentre todas as imagens de feras que dançam em seu escudo, você pode escolher uma esta noite, contra a qual, doravante, estará protegida. Dou-lhe permissão para escolher qualquer uma, salvo o dragão, pois você já mostrou que não precisa de magia para derrotar essa raça, proclamou o Duque.
— Obrigada, meu Duque, disse a mulher que Justin outrora conhecera como Sra. Lombard.
Ela então se ajoelhou e prestou homenagem ao homem sobre o trono reluzente, depois se levantou e afastou-se. Os outros a acompanharam e, de repente, eram apenas Justin e o homem que usava a coroa.
— E você, meu jovem guerreiro, disse o homem com delicadeza, já sabe seu nome? Seria muito bom se soubesse.
E, repentinamente, Justin soube... Soube que nascera com outro nome várias vezes, em muitos corpos e muitas vidas. Os pormenores eram um borrão de sangue e céu azul, de aço tilintante e vidro a se espatifar, mas, de algum modo, ele sabia que eram reais.
Além disso, ele soube que, nessas vidas passadas, chamavam-no "Ulf", que significa "o lobo" em muitas terras e línguas, e que outrora fora um nome temido.
— Eu sei meu nome, Alteza, disse Justin. —E de bom grado serviria ao senhor, se me aceitasse.
— Palavras corajosas, rapaz. Diga-me seu nome e pensarei a respeito.
— Ulf, Vossa Alteza.
O homem no trono ficou em silêncio durante um minuto.
— Ulf, disse ele, baixinho. — Bem, Ulf, se quiser me servir, repita estas palavras:
Juro-vos fidelidade, Duque Hamish Starguided. Vossa ordem é minha vontade, e vosso pedido é meu desejo. Que meus serviços sempre vos satisfaçam, e que minha visão se obscureça em caso contrário. Como as marés obedecem à lua, que minha vontade siga a vossa, meu suserano.
E, assim, Ulf prestou o Juramento de Fidelidade e tornou-se parte da corte do Duque Hamish. Em seguida, o Duque Hamish aceitou Ulf como vassalo ao prestar o Juramento das Redevances, e assim teve início a verdadeira jornada de Justin pelas terras das fadas.
Foi naquele mesmo ano que Justin começou a ter problemas. Ele passava os dias na escola, aprendendo o que a Sra. Lombard lhe ensinava sobre leitura, escrita e aritmética. Ele passava as noites aprendendo o que Anneke era capaz de ensinar, e isso (ao menos na opinião dele) era muito mais interessante.
Ela o instruiu no uso da espada e do escudo até a perícia do rapaz ser enaltecida por ninguém menos que o próprio Duque Hamish. Ela lhe ensinou as regras da corte e os costumes das fadas, e ele também aprendeu bastante com o que ela deixava de dizer. Ele aprendeu as pequenas mágicas chamadas truques e empregou-as para transformar a escola tão, mas tão enfadonha num lugar muito mais interessante e mágico. E ele aprendeu sobre a honra e o que isso poderia lhe custar.
Justin, ou Ulf, era um pupilo muito perspicaz e nunca precisou repetir uma lição.
De vez em quando, Justin passava os feriados em casa, mas, cada vez mais, ele achava que a escola era seu lar e que a casa em que outrora vivera era simplesmente o lugar onde seu pai morava. A escola andava muito mais mágica, e Justin preferia imensamente que seu pai viesse visitá-lo. A madrasta, naturalmente, nunca o visitava.
Na primeira vez que foi para casa, Justin procurou Devin, mas agora estranhos moravam na antiga casa da família do amigo. Justin perguntou ao pai o que tinha acontecido, e este disse que eles haviam se mudado. Justin perguntou se haviam deixado um endereço para que ele pudesse escrever para Devin, mas o pai disse que não. E, assim, Justin se convenceu de que havia perdido seu melhor amigo. Quando voltou para a escola, ele contou o ocorrido aos Kithain que conhecia na corte: Melinda, a Sluagh; o alegre Desmond, o Sátiro; e Sir Reginald, o cavaleiro Pooka, que tinha as feições de um esquilo.
Todos disseram que isso parecia ser o início de uma demanda e tinham certeza de que não demoraria muito para Ulf encontrar um motivo para procurar o amigo. O Duque Hamish, por outro lado, alegou que grandes magias estavam em ação e não deu a Ulf permissão para partir em busca do amigo de infância.
Ulf tentou até mesmo pedir a ajuda de Anneke, mas ela o rejeitou.
— Você fez um Juramento, ela o lembrou, e ele baixou os olhos, envergonhado. — Seria uma desonra a toda a nossa gente se você renunciasse a seu Juramento para procurar seu amigo. Além do mais, o mundo é grande; você ainda é pequeno. Ainda não está pronto para os perigos que ele encerra.
— Mas você poderia vir comigo, disse Ulf tristemente.
— E o que, replicou Anneke, franzindo o cenho, diria seu pai?
E, com essa reprimenda a soar em seus ouvidos, Ulf viu-se abandonado pela magia, que escorreu pelo chão em filetes de Glamour feérico. Naquela noite, ele foi para a cama novamente como o pequeno e tristonho Justin.
No entanto, não foi muito depois disso que certa noite Justin ouviu um toc-toc, alguém estava batendo na janela. Todos os outros garotos estavam dormindo, e Justin não ousou acender a luz para ver quem batia.
Ele se virou e, na janela, havia uma criatura encantada: uma quimera, como Anneke havia lhe ensinado. Ela tinha olhos redondos e enormes como os de um társio, dedos largos e achatados, com ventosas nas pontas, que lhe permitiam grudar-se ao vidro da janela de Justin. Seu corpo era pequeno, cinzento e recoberto de pelos macios.
Na cintura, a criatura trazia um cinto, e no cinto havia uma bolsa cujo volume auspicioso sem duvida escondia algum tesouro.
Ao ver o rosto de Justin, a criatura começou a gesticular freneticamente para que ele abrisse a janela. Ulf (pois ele notou que assumira sua aparência feérica ao observar a fascinante criatura) abriu-a e foi recompensado com um baque suave quando a criatura caiu nos arbustos lá embaixo. Entretanto ela logo voltou ao peitoril da janela, onde fez um reverencia extremamente cortes.
— Tenho eu, a honra, disse ela, com uma voz que se poderia atribuir à um esquilo, de me dirigir à um tal Justin, amigo de um certo Devin?
— Sim, disse Ulf.
— Ah, então trago boas coisas para você! Primeiro, trago notícias de que seu amigo está vivo e bem, embora há muitos quilômetros da terra em que outrora você o conheceu. Ele informou seu destino à Rainha do domínio em que você vivia, mas por meio de poderosas artes, descobriu que ela, com maldosa premeditação, desfez-se dos segredos de sua missiva.
Ulf assentiu com a cabeça. Bem que ele desconfiava da madrasta.
— Mas isso não é tudo! Cricrilo é meu nome, pois sou feito de sonhos e dos pequenos ruídos fugidios da noite. Eu também lhe trago dois presentes de Devin, se você os aceitar.
— Eu os aceito, Cricrilo, mas receio não ter nada para lhe oferecer em troca.
— Nem mesmo uma castanha? E os olhos da quimera ficaram ainda maiores. — Ah, bem, foi só uma esperança momentânea. O primeiro presente que trago é o da profecia. Devin deseja que saiba que vocês voltarão a se encontrar, e que você não se preocupe com nenhuma notícia a respeito dele nos dias que virão. Ele vaticinou o futuro e sabe que essas coisas são verdadeiras. Todavia, o segundo presente que tenho para você é algo mais palpável.
E com isso, a quimera enfiou a mão dentro da bolsa e tirou de lá um anel de prata. O aro era liso e havia uma ametista assentada num engaste em fama de garras de dragão.
— Devin disse que talvez você venha a precisar disto, disse Cricrilo num tom mais sóbrio.
Em silêncio, Ulf pegou o anel e o colocou no dedo. A pedra começou a brilhar suavemente; o brilho era mais intenso quando Ulf apontava a mão na direção do nascente. — Obrigado, Cricrilo. Se você vir o Devin antes de mim, diga a ele que tenho saudade.
— Oh, certamente verei, certamente direi, disse a quimera, e em seguida, com dois saltos e um grande farfalhar de folhas, a criatura sumiu.
Justin fechou a janela e foi dormir. Ao acordar pela manhã, viu que tinha no dedo um anel feito de arame e vidro. Sabiamente, ele decidiu não removê-lo. A Sra. Lombard olhou estranhamente para o anel durante a aula, mas não disse nada. Ela era um Troll, afinal, e conhecia o valor do silêncio.
Mais tarde, naquele mesmo dia, Justin recebeu um telefonema urgente de seu pai. Ele estava muito transtornado e não queria alarmar Justin, mas precisava dar-lhe notícias muito ruins: os pais de Devin haviam telefonado, pois o filho havia fugido. Eles esperavam que Devin talvez voltasse para o antigo bairro e, se algo assim acontecesse, queriam que o pai de Justin acolhesse o menino até que eles pudessem vir pegá-lo. O pai disse a Justin para ele não se preocupar e que tudo acabaria bem.
— Não estou preocupado — disse Justin, e desligou.
O desaparecimento de Devin foi o assunto da corte durante dias. Isidore Webbery, a outra Aluagh que aparecia de vez em quando, achava bem provável que Devin também fosse um changeling, talvez um Exu contador de histórias. Outros encheram os ouvidos de Ulf com condolências e palavras reconfortantes. O Duque Hamish, naturalmente, limitou-se a dar sugestões de como Ulf poderia cumprir melhor seus deveres.
Mas as especulações sobre Devin se extinguiram na quarta noite, quando chegaram notícias de que um dragão quimérico estava novamente à solta na região. Os boatos se espalharam rapidamente: a fera queria vingança por alguma desfeita imaginária; a criatura nascera dos sonhos do Duque Hamish; era o temível monstro que destruíra Caer Dhomnail e todos os que lá viviam!
Mas o Duque Hamish não dava atenção a rumores, ou talvez ele soubesse precisamente a quais deveria dar ouvido. Ele convocou um de seus cavaleiros, uma guerreira que já havia derrotado um dragão desse tipo, e lançou sobre ela o geas de matar o monstro, para que este não mais afligisse as fadas. Anneke, quando soube de seu geas, simplesmente fez uma reverência com a cabeça e retirou-se para sua morada a fim de afiar sua espada quimérica. Ela tinha certeza de que o dragão a encontraria muito em breve.
E foi exatamente o que aconteceu. No dia seguinte, após o término da aula, Justin ouviu o rugido familiar nos campos e viu a imponente cabeça do dragão romper as ondas do milharal como a proa de uma antiga embarcação viking. A fera bramiu um desafio, como um trovão que despenca dos céus, e esperou uma resposta.
Não demorou muito e Anneke veio responder, com a espada numa das mãos e, na outra, o escudo-presente. Ela avançou até onde estava o dragão e ordenou-lhe que se retirasse para um lugar onde nunca mais viesse a afligir nem fadas nem mortais. No entanto, o dragão simplesmente riu e a golpeou com as garras cruéis.
Anneke se abaixou, esquivando-se com facilidade do golpe, e provocou o monstro.
— É o melhor que pode fazer, verme? Ela bradou. — Tenho um aluno de apenas sete verões que teria se esquivado desse golpe!
Em seguida, ela ergueu sua espada e atingiu o ventre do dragão. Foi só por ter recuado como uma serpente diante do fogo que a fera evitou a morte certa.
Foi então a batalha começou de verdade, e Ulf assistiu a tudo com os olhos arregalados de terror e fascinação. Ele queria descer até o campo e ajudar Anneke, proporcionar-lhe um aliado ou, pelo menos, uma distração que lhe permitisse desferir um golpe fatal. Mas ele sabia que suas habilidades ainda não estavam à altura de tamanho desafio. Além disso, era o geas de Anneke lutar com aquela fera, não o dele. Se ele interferisse, ela não iria gostar.
Entre explosões de chamas e o brilho da prata, a batalha grassou durante uma hora inteira. As chamas e as garras do dragão não atingiam o alvo e, mesmo assim, a serpente se mantinha sempre longe do alcance da espada rutilante da mulher-Troll. De um lado a outro do campo de futebol e do milharal, o conflito continuou até que o pior aconteceu. Retirando-se para um pequeno trecho de terra onde antes retalhara o dragão com poderosos golpes, a mulher-Troll escorregou.
Antes que ela ficasse de pé, o dragão ergueu uma das patas e baixou a sobre a mulher com todo o seu terrível peso.
— E agora, pequena valquíria — ronronou o dragão —, é o fim.
Com isso, ele baixou a cabeça e prendeu Anneke entre suas terríveis mandíbulas. O escudo-presente, encantado contra outras feras, foi amassado como se fosse latão, e a armadura da guerreira também vergou. Ulf não conseguiria assistir àquilo e, por isso, virou-se.
Mas não havia como deixar de ouvir a destruição de sua professora: o metal dilacerado, o som nítido de ossos que se partiam. Ela gritou ainda uma vez, antes do fim, e depois o dragão a devolveu ao chão e afastou-se, assobiando uma canção que só os dragões conheciam.
Antes mesmo de a fera ter deixado o campo, Ulf desceu correndo a colina para se colocar ao lado de sua professora. Esbaforido e apavorado, ele a alcançou antes mesmo que os colegas percebessem que ele havia sumido.
A Sra. Lombard estava deitada em meio aos talos de milho destruídos. O vestido se achava enlameado e um de seus confortáveis sapatos havia lhe saído do pé, o que deixara seus dedos enfiados na terra. Ela parecia confusa em vez de ferida, e não havia sinal de sangue nem da armadura em lugar algum.
— Ora, Justin — ela disse assim que o viu —, o que é que estamos fazendo aqui fora? Eu devo ter caído. Venha — e ela se levantou, batendo uma das mãos nos joelhos para limpar a terra. — Vamos voltar para o playground. Não é bom ficar aqui, longe de todos.
Justin se deixou levar até onde as outras crianças brincavam e até conseguiu participar da brincadeira durante algum tempo. Naquela noite, antes de cair no sono, Justin chorou por um bom tempo Ulf chorou ainda mais
Na manhã seguinte, Justin acordou com uma determinação renovada e implacável. Ele encontraria a fera que fizera tamanho mal a sua amiga e professora, e ele mesmo a mataria. Afinal, não cabia a ele completar a missão de sua professora?
Sua determinação não foi abalada nem quando a Sra. Lombard pediu que ele tirasse aquele anel ridículo que estava usando. Ele se recusou a removê-lo, e ela pareceu confusa, mas não insistiu.
Naquela noite, Ulf se apresentou ao Duque a fim de lhe pedir permissão para perseguir o dragão que matara Anneke. O Duque ouviu o pedido de Ulf e depois meneou a cabeça.
— Tenho muitas razões para não agraciá-lo com a liberdade, Ulf. Já perdi um de meus melhores cavaleiros; não quero perder também seus serviços. Você não está pronto para enfrentar tamanha fera, não mesmo. E ainda há a questão de localizar a morada do monstro. Ele se foi, partiu novamente. Mesmo derrotada, Anneke completou seu geas: o dragão se foi, não é mesmo? Não posso dar minha aprovação para que você invada as terras de outro senhor. O Glamour, a matéria dos sonhos que nutre nossas almas feéricas, é precioso e raro. Outros nobres podem não ver com bons olhos a presença de, e ele disse isso com um sorriso condescendente, um bravo guerreiro como você em suas Propriedades Livres. Não, Ulf, não posso permitir que você procure esse dragão. Sirva e contente-se com isso.
— Posso, então, fazer-lhe uma pergunta, meu Duque, antes de voltar a minhas obrigações?
O Duque fez um gesto magnânimo com uma das mãos.
— Concedo-lhe essa dádiva. Pergunte.
— Por que Vossa Alteza proibiu Anneke de escolher a proteção contra os dragões?
O silêncio abateu-se sobre a corte. O sorriso do Duque Hamish despencou como a última folha de uma árvore no outono.
— Ela derrotou o dragão uma vez. Não me pareceu que ela precisasse desse tipo de proteção. É assim que as coisas são entre nós, Infante! Você não tem o direito de me fazer tal pergunta!
Mas Ulf simplesmente meneou a cabeça.
— Acho que nós dois sabemos a verdadeira resposta a essa pergunta, Alteza. Um Juramento se desfez esta noite. Foi um prazer servi-lo. Acho que não nos encontraremos de novo.
E, diante da multidão espantada, Ulf deixou aquele lugar com passadas largas e os olhos brilhantes de lágrimas, pois sabia que seu mestre havia traído sua professora e que ele deveria seguir o caminho da vingança e da tristeza.
Depois de deixar a corte, Ulf voltou ao local em que Anneke perecera. Lá, no chão, ainda cintilavam debilmente alguns pedaços do escudo quebrado. Guiado apenas pela luz das estrelas, Ulf vasculhou os escombros até encontrar o que desejava: o fragmento do escudo que ostentava a imagem de um dragão rompante. Ele enfiou o pedaço de metal em seu talabarte e depois ergueu a mão que trazia o anel de Devin. Foi lentamente girando sobre os calcanhares, e o brilho da pedra do anel era mais intenso quando Ulf se voltava para o Leste. E assim, com o coração pesado e pouquíssimos suprimentos, Ulf caminhou decidido para o oriente. Sabendo que esse dia chegaria, ele havia preparado um pouco de comida e água para a viagem, mas ele também sabia que suas provisões não durariam muito. Se não obtivesse logo o sucesso, ele teria de enfrentar ameaças muito piores que um dragão.
Mas foi um dragão o que Ulf enfrentou. A três dias de caminhada da corte do Duque, Ulf viu-se cara a cara com o dragão. Foi numa avenida, e muitos transeuntes gritavam ao ver aquele garotinho que dançava entre os carros estacionados, esquivando-se e dando cambalhotas como um acrobata ou um louco. Naturalmente, eles não enxergavam dragão nem a verdadeira aparência de Ulf. Tudo o que viam eram um garotinho envolvido numa brincadeira perigosa.
Mas Ulf via o dragão, e este via Ulf. Pior ainda, de alguma maneira o monstro reconheceu o jovem guerreiro.
— Você tem o mesmo fedor daquela mulher-Troll que eu matei, pirralho! Rugiu o dragão. — Daqui a pouco os herdeiros dela vão mandar bebês ainda nos cueiros atrás de mim.
E com isso, ele cuspiu logo e engolfou Ulf completamente. Aquilo ardia como o Sol, e como pimenta numa ferida aberta; era diferente de tudo o que Ulf já havia sentido. Ardia e ardia, e esse ardor o consumiu. Quando Ulf tombou, envolto em chamas, o dragão gargalhou e deu-lhe as costas.
Um transeunte viu o estranho garotinho gritar e cair, estapeando-se como se estivesse em grande agonia. Extremamente preocupado, o homem ergueu Justin do asfalto e o levou para dentro de uma loja ali perto. Ele vasculhou os bolsos do menino e encontrou uma carteira de criança, e dentro da carteira havia o endereço e o telefone do pai de Justin. Ainda mais preocupado (pois o endereço encontrado ficava em outro estado), o homem telefonou para o pai de Justin.
Foi a madrasta quem atendeu ao telefone, mas foi o pai quem correu para o lado do filho tão logo pôde. Ele aninhou Justin em seus braços, agradeceu profusamente ao homem que havia cuidado de seu filho e levou o menino para sua antiga casa.
Mas ninguém viu o dragão partir, e ninguém teve coragem de tirar o anel de arame e vidro do dedo de Justin.
Vários dias depois, Justin estava na cama, acordado, ouvindo o pai discutir com a madrasta. Leah queria mandá-lo de volta à escola imediatamente, mas o pai queria Justin em casa. Obviamente, ele disse, a escola não era capaz de cuidar do menino. Dessa vez, eles tiveram sorte e Justin não havia se machucado muito.
Mas e se houvesse uma próxima vez?
— Bem, disse Leah, a vezes devêssemos procurar vim tipo diferente de escola.
E com isso, a casa ficou em silêncio.
Justin franziu o cenho. Ele sabia que não poderia voltar às terras do Duque Hamish; esse caminho agora estava fechado. Mas tampouco queria ficar ali, pois, apesar de amar o pai, a simples presença da madrasta consumia-lhe a identidade onírica. Era como se a própria voz dela fosse o frio vento de outono que prenunciava a chegada do Inverno em sua alma. Ulf parecia muito pequeno e distante sempre que Leah falava.
Mas essa terceira opção, esse novo tipo de escola que a madrasta tinha mencionado assim de passagem, isso também parecia perigoso. Acossado de todos os lados, Justin fechou os olhos e tentou dormir.
De repente, o quarto se encheu de uma bruxuleante luz púrpura. Era a pedra do anel que se agitava com um brilho que ele nunca vira antes! A luz do anel iluminou o quarto como se fosse dia, e Justin fitou a pedra, maravilhado. Ele seguira o brilho do anel para encontrar Devin, o que significava que, se agora a luz da pedra era tão forte, Devin deveria estar...
Ouviu-se uma batida seca na janela. Justin livrou-se dos lençóis e correu abri-la. Encontrou Devin agachado sobre o peitoril, vestindo colete e calças de tempos remotos. Seus olhos pareciam mais sábios que nunca, mas ele sorriu de puro contentamento ao rever o amigo.
— Entre, entre! E Justin o puxou para dentro. — Conte-me tudo!
E foi o que Devin fez. Sentado de pernas cruzadas sobre a cama, ele contou a Justin que a família dele havia se mudado e as estranhas visões continuaram. Então, uma noite, um tio seu, um homem que nem ele nem seus pais viam havia anos, reapareceu a sua porta. Os pais de Devin, naturalmente, ficaram impressionados com o retomo desse parente pródigo, mas Devin ficou ainda mais impressionado.
Acontece que esse tio era um Exu, um tipo de fada errante que gosta de contar histórias. Usando de magia ou encantamento, ele percebeu que o sobrinho, o já esquecido Devin, também abrigava a alma de um Exu e, por isso, enfrentou com bravura longas estradas para encontrá-lo. E, assim, esse tio, cujo nome Devin nunca revelou, visitou-o muitas vezes nos meses que se seguiram e ensinou-lhe (a Devin, ou Ismail, como este era conhecido entre as fadas) os costumes dos Exus.
Foi quando esse misterioso tio levou Ismail para sua Consignação, sua iniciação formal nos costumes do mundo dos changelings, que os pais de Devin pensaram que ele havia fugido. Ele voltou, mas, de alguma maneira, seus pais adivinharam que o tio era a raiz do "problema" e baniram o homem da casa.
E, assim, Devin fez a única coisa lógica: ele fugiu de verdade.
— Mas, disse ele, ao terminar sua história, há outras coisas a fazer. Uma traição a ser vingada. Um dragão a matar. Honra a se recuperar. Ouvi histórias sobre tudo isso, Ulf. A repercussão de seu caso é maior do que imagina. E então, que estrada você vai seguir?
Justin fitou o amigo com olhos tristonhos.
— Eu não sei. Anneke se foi, eu não sirvo mais ao Duque nem sou forte o bastante para enfrentar o dragão.
— Não é forte o bastante para enfrentá-lo sozinho, corrigiu o amigo. A esperança renasceu nos olhos de Justin.
— Quer dizer que você vem comigo?
— E você tinha alguma dúvida?
Justin riu de pura alegria.
—Era minha esperança, mas... Ah, isso é incrível!
E os dois changelings riram tão alto que os caibros da casa do pai de Justin chegaram a estremecer.
— Dá para fazer menos barulho, Justin? Algumas pessoas precisam dormir! Soou a voz retumbante de Leah.
E, assim, com um exagero de cuidado e cortesia, os dois meninos saíram pela janela, desceram pela calha, atravessaram o quintal e perderam-se neste vasto mundo em busca do dragão.
Na manhã seguinte, quando acordaram e descobriram que o menino desaparecera e que a janela estava aberta, Leah e o pai de Justin discutiram novamente. Mas isso não faz parte de nossa história.
Nos dias que se seguiram, Ismail contou a Ulf tudo o que aprendera com o tio sobre a arte de matar dragões quiméricos. Muitas dessas feras faziam parte das crônicas feéricas, e a maioria foi morta da maneira tradicional: lançando-se dezenas de cavaleiros aparelhados contra o monstro. Os matadores solitários de dragões eram mais raros, mas havia alguns. Esses guerreiros geralmente tinham espadas, escudos, elmos e outros equipamentos mágicos, mas Ulf e Ismail não possuíam nada disso. Além do mais, menção de escudos mágicos, Ulf gritou furiosamente com o amigo e, portanto, Ismail mudou de assunto. O Exu se lembrava de uma ou duas histórias sobre heróis que haviam derrotado dragões em torneios de adivinhas, mas, como o jovem Troll nunca conseguira entender muito bem por que a galinha atravessou a rua, ambos concordaram que essa não era uma opção.
— Mas por que você não troca adivinhas com o dragão? Perguntava Ulf em seus momentos mais melancólicos. — Você é bom nisso.
— Sou, mas esta é sua demanda, Ulf, respondia Ismail pela centésima vez. — Eu já cumpri a minha, encontrei minha própria magia, mereci meu próprio nome. Agora é sua vez de fazer o mesmo. Sim, eu posso ajudá-lo, mas a mão que matará o dragão tem de ser a sua.
E com isso, Ulf afundava-se num silêncio taciturno.
— Não é justo, ele costumava dizer, e Ismail simplesmente concordava.
Foi só depois de sete dias de viagem, evitando policiais amistosos e quimeras nem tão amigáveis assim, conhecendo fadas ou sonhadores ocasionais, banqueteando-se com barras de chocolate roubadas e as cativantes fantasias dos mortais, que os dois fugitivos encontraram o rastro do dragão. Uma enorme marca chamuscada no centro de um parque assinalava o ponto em que o dragão havia passado a noite. Ulf quis caçar o monstro imediatamente, mas Ismail tinha outras ideias.
— Vamos passar a noite aqui, ele aconselhou, dormindo onde ele dormiu. Talvez a gente consiga captar alguns de seus sonhos. Fazendo isso, podemos descobrir suas fraquezas.
Portanto, os dois se aconchegaram para passar a noite em meio ao fedor do dragão quimérico e fecharam os olhos. Quase de imediato, Ulf começou a ter sonhos sobre o dragão. Eram sonhos de dor e fogo, repletos de ouro, despedaçados pelo aço. Diversos sonhos mostravam Anneke, às vezes triunfante, outras vezes derrotada. Mas um rosto aparecia em todos os sonhos; o semblante sisudo do Duque Hamish. Nesses sonhos, a luz dos olhos e do trono do soberano era fria, mais fria que o gelo, e Ulf sentiu o medo do dragão.
Ismail, por sua vez, afirmou, de manhã que não havia sonhado, mas passou todo o dia seguinte olhando estranhamente para o amigo.
E assim, os dois continuaram sua jornada, que se prolongou por vamos dias. Por fim, Ulf notou que o terreno começava a parecer familiar. Não demorou muito e as colinas e estradas se transformaram nas terras vizinhas à escola onde tantas coisas tinham acontecido, aparentemente havia muito, muito tempo.
Ulf comentou o fato e Ismail respondeu:
— Ele está voltando para casa. É a terceira vez que ele fazia isso, sabe... A terceira vez é sempre a última.
Ulf perguntou como ele sabia destas coisas, mas Ismail simplesmente deu de ombros e disse que era magia.
Foi naquela noite que eles finalmente encontraram o dragão no campo onde Anneke havia perecido. Deitado, ele, descansava seu corpanzil no pedaço de terra em que a valquíria Troll havia escorregado e em seu sono inquieto, expelia jatos de fogo. Era enorme! Do focinho à cauda, o dragão deveria ter mais de trinta metros, e Ulf perdeu a esperança de derrotá-lo. Foi então que Ismail lhe deu uma cotovelada.
— Estou aqui com você. O espírito de Anneke está com você. Este feito cabe a você, e você há de realizá-lo com tamanha glória que, juro, as canções que eu compuser sobre esta noite serão repetidas durante uma centena de anos. Vá!
E, com o encorajamento do amigo a soar em seus ouvidos, Ulf sacou a espada quimérica que carregara consigo durante todas as suas jornadas e picou o dragão bem no focinho. Uma típica gota de sangue negro irrompeu do corte, o dragão ergueu a cabeça e soltou um rugido terrível.
— QUEM OUSA? Gritou o monstro aos céus, depois olhou para baixo e viu Ulf. — Então você retornou, criança-Troll, retomou para provar a morte! Bem, serei misericordioso esta noite: seu fim não será tão doloroso quanto o de sua professora!
Em seguida, como uma serpente a dar o bote, a grande cabeça escamosa lançou-se de presas à mostra sobre Ulf.
Mas Ulf havia se preparado para essa batalha a sua própria maneira: ele tinha visto os sonhos do dragão, testemunhado suas batalhas e, portanto, estava pronto. Quando a imensa bocarra baixou, Ulf rolou para a direita e ficou de pé. Sua espada atingiu a face do dragão quando a cabeça da fera passou por ele. O dragão rugiu outra vez, e foi então que a batalha começou de verdade.
Ah, que embate foi aquele! Malgrado o bom senso, malgrado a razão, malgrado até mesmo a magia, Ulf conseguiu aparar todos os golpes da serpente e responder ainda melhor. Não demorou muito para Ulf perceber que outros assistiam à batalha: Isidore, Melinda, Desmond, Sir Reginald e todos os demais membros da corte do Duque Hamish. O próprio Duque foi o último a aparecer e ficou ali, de pé, sozinho, com a delgada espada desembainhada brilhando à luz do fogo dragontino. Mas não havia nem sinal de Ismail.
Foi então que chegou o momento que o dragão estava esperando. Ulf insistira estupidamente num ataque até se posicionar no exato local em que Anneke havia caído e, como ela, ele também escorregou. A multidão prendeu a respiração, horrorizada. O dragão soltou um brado de triunfo e preparou-se para baixar a pata mortífera.
E, nesse exato momento, Ismail sacou do bolso um comprido alfinete de aço que ele guardava para essas ocasiões e o cravou na cauda do dragão.
O grito que se seguiu teria derrubado casas, se houvesse alguma por perto. Ulf, esquecido durante um segundo eterno, aproveitou a oportunidade para ficar de pé. Contudo, enquanto estivera deitado na terra fatídica, Ulf sentira algo afiado contra suas costas: os restos do escudo de Anneke. Foi então, e somente então, que ele se lembrou do que carregava consigo e, largando a espada, sacou o fragmento do escudo de seu talabarte. Quando o dragão recuperou a razão e inclinou-se novamente para devorar o pequeno Troll, Ulf lançou uma maldição sobre todos os dragões e seus criadores e jogou o fragmento metálico dentro da boca da fera.
Os resultados foram tanto imediatos quanto profundos. Com um guincho igual a milhares de unhas raspando milhares de quadros-negros, o dragão desabou pesadamente no chão. Ele sucumbiu aos estertores da morte enquanto Ulf e Ismail corriam para um local seguro.
Mas o mais interessante, pelo menos na opinião de Ismail, foi o fato de que, assim que Ulf enunciou a maldição, o Duque fincou sua espada no solo e partiu, e nunca mais foi visto nem pelas fadas nem pelos mortais. E, na celebração que se seguiu ao triunfo de Ulf e Ismail, nenhuma fada sentiu falta do Duque nem houve qualquer comentário.
E, se prestar atenção à história que Ismail compôs naquela noite, cantada pelos Exus e sussurrada pelos Sluagh repetidas vezes ao longo dos anos, você ouvirá outras coisas: que Isidore Webbery contou a Ulf que o escudo fatídico havia lhe pertencido numa outra vida e fora tomado no campo de batalha pela traição de Hamish; que a espada do Duque, agora enegrecida pelo fogo do dragão, ainda jaz na colina onde Hamish a cravou e ninguém foi capaz de arrancá-la; que Ulf fez para si uma armadura de escamas de dragão que nenhuma chama ou espada é capaz de atravessar; e muitas outras coisas.
Mas a parte da história que Ismail não conta a ninguém é que, morto o dragão e banido o traidor, Ulf virou-se para o amigo e, ainda com a voz fina do pequeno Justin, disse:
— Devin, vamos para casa.