Ato

Ato. Do latim actum, fato realizado. 1. Todo exercício voluntário de poder material, ou espiritual, por parte do homem. Ex.: ato de coragem, ato de violência etc.

2. Um ser em ato é um ser plenamente realizado, por oposição a um ser em potência de devir ou em potencialidade (Aristóteles). Ex.: a planta é o ato da semente, que permanece em potência enquanto não for plantada. 

3. Ato puro é o Ser que não comporta nenhuma potencialidade e que se subtrai a todo e qualquer devir: Deus.

4. Na linguagem filosófica, ato se distingue da ação: ação designa um processo que pode comportar vários atos. "Passar ao ato" é fazer algo preciso. "Passar à ação" é empreender algo mais amplo. Por sua vez, ato e ação se opõem a pensamento ou palavra: pensar e falar não podem ter efeito sobre a matéria, ao passo que agir tem um efeito. Claro que nas relações entre os homens, pensar e falar são modos de agir. Finalmente, ato se opõe a potência: o ato designa aquilo que existe efetivamente; a potência designa aquilo que pode ser ou que deve ser. (1)

Ato. a) Segundo Aristóteles o ato é o princípio do agente, pois um agente o é tal, enquanto em ato. Portanto ele só se dá no que está em ato; que antecede ao que está em potência. O que está em ato é necessário ao que está em potência, pois é aquele o sustentáculo do que é potencial. Aquele naturalmente move (realiza uma moção). Tudo quanto está em ato ou é uma forma subsistente ou tem sua forma em outro.

b) Um enunciado psicológico dessa palavra diz que um ato é um movimento de um ser vivo, bastante rápido para ser percebido como tal (excluindo, por ex. o crescimento) e dirigido a um fim, que pode ser desejado voluntariamente pelo indivíduo (atos voluntários) ou não (atos reflexos, instintivos, automáticos). Mas embora o ato não seja voluntário em sua causa, a aparência externa deve configurá-lo com analogia aos atos voluntários para corresponder à concepção psicológica deste termo.

c) Na ética chama-se de ato um acontecimento que não se explica pelas meras leis físicas naturais, mas que é causado por um ser suscetível de qualificação moral. Esse ato não precisa necessariamente exteriorizar-se em um movimento perceptível; ao contrário, pode consistir exatamente em uma inibição de tal movimento, permanecendo o ato ético puramente intrínseco.

d) No direito, ato é considerado uma determinação voluntária que tem um efeito exterior. Também se fala em ato de legislação (um estatuto) distinguindo-se: a) atos públicos, que visam regularizar um assunto de interesse geral e que todos os sujeitos são obrigados a conhecer; b) atos particulares, concernentes a interesses particulares e a respeito dos quais não se impõe geralmente ao público conhecê-los.

e) Na metafísica, ato figura como tradução do termo escolástico actus, que por sua vez é a tradução dos termos aristotélicos (enérgeia e entelékheia).  Aristóteles chama ato ao resultado do advento ao ser da potência, dynamis, da matéria, mas enquanto vir-a-ser. A mesma relação entre o possível e o real e entre a matéria e a forma é a relação existente entre potência e ato. Mas a matéria está em uma relação estática com a forma. Enquanto uma coisa está em potência não é ato; quando em ação, não é mais potência. O ato não é, no entanto, a realização da potência, mas o fim da potência que se realiza. A realização da potência é a passagem desta para o ato, o que Aristóteles chama moção.  Como a ação é uma espécie de moção, participa da tríplice modalidade de cada moção, que sempre pode ser considerada como: a) uma moção possível (potencial); b) a moção no próprio processo de realizar-se, e c) a moção realizada ou a nova realização, criada por meio dessa moção. Aristóteles serve-se, em geral, do termo enérgeia para significar a segunda modalidade, e de enteléquia (enteléckheia) para a terceira. Enérgeia também aparece como sinônimo daquelas palavras que significam o elemento da forma que tem especial relação com a modalidade primeira.

Essa última afirmação exige uma explicação: em que sentido um movimento possível (ou um ato possível) é relacionado com a forma? Cada possibilidade reside em um ente já atualmente existente. Se em um ser há possibilidade de uma moção, então reside nele, já preformada, a forma dessa moção, porque as determinações ontológicas da própria natureza desse ente são também o fundamento formal da natureza daquela moção. Assim a moção ou ato de um artista ao confeccionar uma obra de arte é preformada na natureza do artista que, abstraindo-se ainda da particular aptidão artística, tem pelo menos quer ser uma natureza humana, já que a mesma moção (atuação artística) não se devia esperar de uma pedra, porque a natureza de pedra não é capaz de abrigar a forma em que consiste essa aptidão de criar obras artísticas. Daí resulta que a forma da moção se acha em íntima conexão com a natureza do movido, de sorte que todo elemento formal da própria moção ou ato já se acha predeterminado pela natureza ou qualquer organização adicional (conhecimento) do movido. Por isso tendo cada moção ou ato o seu elemento formal, preformado naquele ente, que é capaz de efetuar a respectiva moção, é comum aplicar-se o termo ato a um ato possível.

Há mais um elemento intermediário entre a mera possibilidade, potência de efetuar um ato e a sua realização efetiva. Isto é o que Aristóteles chama de éxis (lat. habitus). O hábito é mais do que a mera possibilidade, porque ele já significa uma inclinação (não mera tendência) para certos atos e uma habilidade especial para efetuá-los. Assim a possibilidade de um ato artístico, da criação de uma obra de arte, reside em princípio em cada homem, mas só o artista possui o hábito relativo a tal espécie de atos.

O ponto de vista unificador, portanto, das três citadas modalidades de ato, aumentado ainda pelo conceito do hábito constitui o elemento formal, a unidade de organização intrínseca, que faz aparecer a mera possibilidade e o hábito como um ato incipiente, que se realiza no próprio processo da moção e que sendo realizado, não termina ainda, mas continua como uma realização do próprio processo e como um resultado arquitetônico de todos os fatores que tomam parte nele.

O estabelecimento dessa unidade entre as diversas modalidades do ato não tem qualquer caráter arbitrário ou forçado. Pois como o ato tende a um fim (enteléquia) o elemento formal unificador identifica-se com o próprio fim. A causa que constitui o fim ao qual aspira a construção contém em si mesma a construção. Tratando-se, porém, não como neste caso de um fim exterior, mas de um ato que é ele mesmo o seu próprio fim (distinção que faz Aristóteles para fazer jus a fenômenos como a visão ou o pensamento), vale não obstante a mesma identificação entre forma e fim, visto que o intelecto se confunde com o material informante inteligível e o pensamento. O fim em si não é outra coisa senão a informação do intelecto.

f) Na fenomenologia de Husserl não são os atos atividades psíquicas, mas vivências intencionais.  Deve-se portanto excluir dele toda a ideia de atividade com a qual o ato (Akt) distingue-se tanto da ação (Tat) como do actus no sentido clássico. (2)

Ato e Potência na Escolástica. Os quatro principais axiomas sobre o ato e a potência, estabelecidos pela escolástica, são os seguintes:

1) O da limitação do ato pela potência, que serve para explicar a finitude dos seres;

2) O da multiplicação do ato, que serve para explicar a multiplicidade dos seres de uma espécie;

3) O da unidade do ato, que serve para explicar a verdadeira unidade dos seres, cuja natureza se compõe de dois princípios substanciais: matéria e forma. É o problema da unicidade da forma substancial;

4) O axioma do trânsito da potência ao ato, muitas vezes considerado como a mais profunda expressão do princípio de causalidade, e que serve de base para a prova da existência de Deus como atualidade pura (primus motor immobilis), e de sua contínua cooperação com as criaturas.

Para os tomistas, ato e potência pertencem à ordem real, em contraposição à ordem lógica. Estão na relação mútua de determinante e de determinável, e eles sustentam haver uma distinção real. Os escotistas consideram apenas como gradus metaphysici à semelhança das formalidades, como vida, heceidade, etc., e distintas ex natura rei. Tal afirmativa leva aos tomistas a chamá-los de realistas exagerados. Cabe saber o que entendem por real. Tal termo, em toda a escolástica, é de um sentido ambíguo. Segundo Gredt há distinções entre ato e potência. O ato é separável da potência (actus realiter est separabilis a potentia... potentiam ab actu realiter distingui ex eo quod potentia est ide quod est determinabile, actus vero id quod est determinans; iam vero determinans et determinabile realiter distinguntur oportet).  (Elementa II 5,39).

O que se pode separar é o que é realmente distinto. Além disso o que determina e o que é determinado não podem ser a mesma coisa, e se o ato determina a potência e esta é determinada por aquele; a distinção é então efetiva. Do contrário seriam o determinante e o determinado apenas aspectos, sobre os quais nosso funcionamento especificamente intelectual estabelece os conceitos de ato e de potência. Por acaso tudo quanto distingue ele conceptualmente pode ser afirmado com distinção real, no sentido que os tomistas empregam? Nesse caso tudo o que fosse realmente idêntico teria que ser conceptualmente idêntico. Se é assim, a atividade abstrativa de nossa intelectualidade estaria negada, e teríamos então estabelecido um paralelismo entre a ordem do conhecimento e a ordem do ser, o que é, na escolástica, o fundamento epistemológico da distinção formal escotistica e que, no problema dos universais, conduz a um realismo conceptual extremo, segundo muitos.

Os escotistas afirmam que há apenas uma distinctio formalis. Os tomistas respondem que os argumentos não procedem, porque ato e potência são realmente distintos, portanto distintos na mente como nas coisas. Não são meros aspectos, mas realidades separáveis. Suarez, como Tomás de Aquino, acusava de erro aqueles que pretendem medir a distinção das coisas pela distinção dos conceitos. Não há nenhuma necessidade de que a meramente conceptual corresponda, como fundamento, a uma distinção real. Mas, para Tomás de Aquino e os tomistas, quanto a ato e potência, há essa distinctio realis ex natura rei.

Qual o significado do termo real para os escolásticos? Real refere-se à ordem da existência. Significa o contrário do nada real, que também chamam de nada físico, em contraste com o nada absoluto ou metafísico. Ao mundo da metafísica geral pertencem as essências. Todos os objetos que pertencem à ordem metafísica se denominam de reais, embora não existam in actu (Fuetscher). A ordem metafísica é uma ordem real. É antítese do simples nada ou nada absoluto.

Segundo os escolásticos as essências, embora constem de uma determinação ou de várias, têm verdadeira unidade e, como tais, são capazes de receber a existência. Temos assim um real-físico e um real-metafísico. "Essência significa a soma das determinações de um objeto, o conceito essencial, que contém todas aquelas notas que são comuns aos indivíduos de uma mesma classe de ser, e só aquelas que constituem precisamente essa classe com diferença de todas as outras... Uma essência, enquanto é comum a vários seres, e constitui por isso mesmo conceito essencial dos mesmos, só pode achar-se, enquanto tal, num sujeito cognoscente; não pode ser um ‘objeto’ do mundo físico... Pertence, necessariamente, à ordem lógica... E se considerarmos a essência puramente em si, em absoluto, ou enquanto é capaz de receber a existência, então tal essência pertencerá à ordem real. Estará ‘objetivada’ , será um ‘objeto’ da ordem ‘metafísica’, um ‘objeto’ do reino das possibilidades, do qual pode ser transladado para a existência pela ação de uma causa eficiente, e convertido, desse modo, num objeto da ordem ‘física’... Os conceitos, nós os concebemos como ‘criações’ da ordem ‘lógica’. "(Fuetscher).

Daí a base tomista da distinção real de ato e potência fica assegurada, mas não sabemos qual espécie de real, se o real-físico ou o real-metafísico. Se se admitir um paralelismo perfeito entre a ordem metafísica e a real, então tudo quanto se distingue real-metafisicamente será distinto real fisicamente; isto é, o que pertence à ordem da possibilidade e o que pertence à ordem da existência. Os objetos metafísicos prescindem, portanto, da existência. Se não existe o paralelismo, então neste caso os objetos de ordem metafísica distintos real-metafisicamente podem não ter uma identidade real na ordem da existência. Resta provar, e em cada caso, que há uma distinção real-metafísica e real-física. Estamos no problema do paralelismo entre a ordem do ser e a ordem do conhecimento. Aceito esse paralelismo distingue-se realmente o que é distinto independentemente do conhecimento. Toda distinção lógica ou conceptual é aquela que apenas se realiza no plano do conhecimento.

"As essências metafísicas, enquanto supõem uma abstração do pensamento, dizem relação com o sujeito cognoscente, e sob esse ponto podem ser computadas como da ordem do conhecimento, por contraposição, à ordem física de ser, cujos objetos não possuem o ser em tal ordem por meio do pensamento. Por isso, a ordem do conhecimento não coincide exatamente com a ordem ‘lógica’, pois os objetos metafísicos não são ainda objetos lógicos. Ambos convém em não poder ‘existir’ em sua ordem, mas dependendo de um sujeito cognoscente. Mas, fora disso, as criações lógicas são de tal índole, quanto ao seu conteúdo, — por exemplo, o conceito universal como tal —, que não pode achar-se, nem sequer segundo sua ‘quididade’, fora de um sujeito cognoscente; enquanto as essências metafísicas - por exemplo, homem, causa e substância - podem achar-se, enquanto ao seu conteúdo, realizadas na ordem física. A consciência metafísica, concebida como essência metafísica de um ser, converte-se no conceito essencial do mesmo e, consequentemente, num ens logicum. Em compensação, se se considera a compreensão puramente isolada, esta essência, considerada em absoluto - exemplo: homem - pertencerá à ordem metafísica e será um ens metaphysicum. E tal seguira sendo, embora se considere a possibilidade de realização dessa essência. Se se acha de fato realizada na ordem da existência então será um ens physicum. Assim a mesma essência, segundo os diversos pontos de vista, pode pertencer a diversas ordens". (Fuetscher)

Não negam os escotistas a fundamental distinção real entre ato e potência, mas negam que seja uma realidade "independente do conhecimento". A ciência, para os metafísicos, est de universalibus. Ela estuda os objetos mediante a abstração de sua individualidade e os estuda na generalidade. Mas a ciência não os estuda em sua forma abstrata, mas enquanto à sua quididade.  Consideram os metafísicos a ordem da essência por contraposição à ordem da existência. Os objetos da metafísica não subsistem antes da atividade cognoscitiva e com independência dela, mas pressupõem a abstração da existência, segundo Fuetscher.

Abstraímos as essências das coisas que se apresentam ante nossa experiência interna e externa, analisamo-las e comparamo-las com os diversos elementos singulares, formamos novas unidades e chegamos por este caminho às relações e leis necessárias que reinam entre elas.

Na relação entre o ato e a potência como sujeito cognoscente, a posição tomista é declarada platônica, por alguns escolásticos não tomistas. "A imaterialidade é a condição da inteligibilidade. O cognoscível é o imaterial, não o material. O que é actu cognoscível, deve estar actu livre na matéria. Em compensação o que está actu na matéria não é cognoscível actu, mas só em potência, posto que pode ser despojado da matéria. Com esse fim, possui o homem uma faculdade espiritual particular, o intellectus agens, cuja missão é despojar a forma da matéria, e fazê-la desse modo actu cognoscível. Muito bem: como a matéria é o princípio da individuação, resulta daí que o singular, o indivíduo, não é diretamente cognoscível, mas apenas a forma ‘abstraída’ da matéria, o universal. O singular conhece-se por referência à imagem sensível da fantasia, imagem da qual o intellectus agens tomou a forma universal". (Fuetscher).

Todo cognoscível é reduzido a esquemas, através do processo de assimilação, portanto incluído no esquemático, no que é o conteúdo do conceito. Dessa forma, tudo quanto conhecemos são qualidades, notas, aspectos classificáveis em conceitos. Por mais que procuremos captar a singularidade da unidade, ela nos escapa, porque toda a nossa inteligibilidade está condicionada aos esquemas, que funcionam como generalizadores. No entanto, sabemos, sem ter uma intelecção (dentro da atividade da intelectualidade), que há essa unicidade, mas sabemos confuse, confusamente (fundida com... outros aspectos).

O existencialista, que a afirma, desespera de obtê-la, porque sempre encontrará véus que a ocultam, O único é inapreensível e incomunicável. Mas que apreensibilidade e que comunicabilidade? Uma apreensibilidade e comunicabilidade intelectuais só as podemos ter através de conceitos e por conceitos, portanto generalidades. Eles querem apreender a unicidade através dos sentidos, pela sensibilidade? Impossível, porque esses estarão condicionados aos esquemas sensório-motrizes e pelas estruturas já formadas por nós, através da experiência, toda apreensão estará condicionada ao dinamismo da adaptação psíquica.

Os fundamentos platônicos do tomismo têm uma base, a qual está esquematicamente fundada na intelectualidade e no sensório-motriz (sensibilidade). A cognoscibilidade está portanto jungida ao geral, ao imaterial, à forma, que se atualiza no singular, sem se tornar singularizada, isto é, em franca oposição a este. A materialidade da singularidade é inapreensível. E para o tomismo, a forma unida com a materialidade não é actu cognoscível, mas   só em potência. Terá portanto que despojar-se primeiramente da matéria, desmaterializar-se para ser actu intelligibilis. (2)

(1) JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 5.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

(2) SANTOS, M. F. dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais. 3. ed. São Paulo: Matese, 1965.