Abstração

Abstração. (do lat. abstrahere) a) Gramaticalmente é o ato pelo qual nosso espírito separa num objeto, uma qualidade particular para considerá-la isoladamente de todas as outras, e com exclusão do próprio sujeito.

b) Filosoficamente, abstrair consiste em separar (abstrahere = arrancar, desligar) pelo pensamento, ou considerar separadamente o que não pode ser dado separadamente na realidade. A abstração insula, pelo pensamento, o que não pode ser insulado na representação.

c) A absorção do pensamento, com inatenção aos acontecimentos exteriores (Note-se a sinonímia com ausência (vide).

d) Processo mental pelo qual certos caracteres, atributos ou relações são observados, independentemente de outros, que são negligenciados. (As acepções b e d são da psicologia).

e) Definição ontológica: Abstração é separar mentalmente o que, na realidade, não está separado.

f) Não deve ser confundida com a análise (vide). Esta considera igualmente todos os elementos da representação analisada, e divide em partes uma coisa composta; considera, insuladamente, uma qualidade comum a uma multidão de compostos. Assim reconhecer a brancura de uma rosa determinada é fazer análise; conceber a brancura em si-mesma, como qualidade peculiar a um grande número de objetos, é proceder abstração. A abstração é, portanto, a base da formação das ideias gerais.

g) No sentido vulgar separar elementos que nos desinteressam. Lalande chama a atenção que, durante a operação de abstrair (no sentido vulgar), faz-se abstração dos elementos que nos desinteressam. É isso um contra-sentido, embora permaneça na acepção latina de "abstrahere áliquid ab aliquo", porque neste caso designamos precisamente o contrário do que se chama "abstrair", ou "considerar por abstração". Nesta acepção há um equívoco que deve ser cuidadosamente evitado.

Observações gerais: Abstrair é, pois, separar atributos, aspectos. A racionalidade humana age por abstrações. Observemos a concepção da esfera, da circunferência, de uma área. Abstraímos sempre certas características. O homem só concebe pensamentos por intermédio de abstrações. Juntamos qualidades aos objetos, damo-lhes certas características para permitir os conheçamos. Podemos, contudo, separar essas qualidades. São ângulos diversos por onde conhecemos as coisas e os fenômenos. Ante um campo, podemos abstrair o verde ou, ainda, conceber a circunferência abstraída de uma determinada qualidade. Concebemo-la como ideal, fora da percepção; por exemplo, o verde, o azul, independentes das coisas verdes ou azuis. No primeiro caso, desassociamos; no segundo, abstraímos. Toda ideia geral, em suma, é uma abstração, porque encerra uma noção geral, universal, mas sem os atributos perceptíveis. É puramente ideal.  

Assim, toda ideia geral é abstrata, porque não contém os característicos dos sujeitos, objetos que representa. Muitos consideram que uma ideia abstrata pode não ser geral. É o caso de considerar, apenas, a cor branca deste papel. É somente o branco deste papel que consideramos abstratamente, fazendo abstração das outras qualidades. Mas, explica Goblot, se considerarmos a cor branca deste papel, separada das demais qualidades do papel, podemos conceber, outrossim, coisas que possuam também essa cor branca, e a ideia passa, portanto, a ser geral, ao mesmo tempo que abstrata, ou, então, essa cor branca pertence somente ao papel, o que quer dizer que não se pode separá-la das outras qualidades que o constituem. Neste último caso, a ideia não é nem geral nem abstrata. E diz: "Cabe perfeitamente, é certo, sem desassociar as qualidades de um objeto, sem deixar de considerá-lo in concreto, fixar, de preferência, a atenção sobre tal qualidade ou, ainda, sobre tal propriedade. É isso fazer uma abstração?"

As próprias ideias podem possuir graus de abstração. Assim cor é mais abstrata que vermelho, azul, verde; sensação, mais abstrata que cor; fenômeno mais que sensação, etc.

Filosoficamente, não é sinônimo perfeito de geral, pois segundo Globot ao fazermos uma abstração, separamos um caráter dos demais caracteres, com os quais se encontra misturado num objeto, sem considerar se o caráter, assim separado, é aplicável a outros objetos: ao fazer uma generalização, aproximamos com o pensamento objetos que possuem um caráter comum, sem considerar se este caráter se encontra, em cada objeto, misturado com outros caracteres diferentes ou variáveis.

Herbert Spencer exagera a importância desta distinção quando admite verdades abstratas, que não são gerais, que não são, pois, abstratas. Chega a afirmar que as relações ideais dos números são as únicas verdades simultaneamente gerais e abstratas.

Husserl definiu o abstrato e o concreto não em virtude de sua idealidade ou realidade, mas em virtude de sua separação de um todo, em função de sua subsistência ou não subsistência num universal concreto. Dessa forma, "um abstrato puro e simples é um objeto que está em um todo, com respeito ao qual a parte não é independente". O abstrato depende, pois, do todo no qual está inserto, enquanto o concreto é independente dele, pois possui subsistência própria. Por isso os universais não são necessariamente abstrações, o que não quer dizer que sejam conceitos hipostasiados nem generalidades meramente nominais, mas totalidades concretas ideais, essenciais. A parte abstrata, ou momento de um todo é, consequentemente, "toda a parte que é não-independente relativamente a outro todo superior." (Investigações lógicas 3º, 17)

Abstração experimental é aquela em que o observador se limita ao tema (Ausgabe, em al., instructions, em ing.), para fixar um aspecto parcial de uma situação perceptiva.

Abstração material é a que cria ideias de qualidade. Nesta se considera a ideia abstrata como atributo do sujeito; quer dizer, como um dos termos de que se compõe a matéria de um juízo.

Abstração formal é a que cria ideias de relações. É a que se dá entre um atributo e um sujeito; portanto, esta relação é a que se denomina a forma do juízo.  

Nome abstrato é o nome de uma qualidade (branco, suavidade, etc., ou de uma relação, dimensão, etc.)

Número abstrato é o que designa, quantitativamente, sem a designação qualitativa da natureza das unidades (exs.: 30, 2, 4, etc.). Número concreto é, portanto, o contrário, o que é seguido de uma designação qualitativa. (exs.: 10 metros, 20 casas).

Crítica psicológica - A abstração é uma separação no e pelo espírito do que, na realidade, na natureza, não é separado, nem pode ser tomado separadamente em sentido físico. Concebendo-se assim, evita-se a confusão que se faz entre abstração e separação, e a que consiste na acentuação da atenção sobre uma qualidade ou parte de um objeto, quer real ou ideal.

Essa acentuação da atenção sobre uma qualidade não é ainda uma abstração ou ato abstrativo, embora a gere, porque se fixa no espírito, pela atenção que mantemos sobre algum objeto ou parte deste, e o comparamos com outro semelhante. Esse ato atencional é um estatizar do que se dá dinamicamente. Não podemos abstrair algo sem algo que se compare com outro, que lhe é semelhante. Se verificamos que tal fato antecede tal outro — por exemplo, que ao esquentar a água, até certo ponto, ela entra em ebulição — podemos verificar tal fato com maior ou menor atenção, desatendendo outros que sucedem ao derredor. E se verificamos esse fato numerosas vezes, concluímos que a água, quando esquentada até certo ponto, entra em ebulição. Podemos concluir que a ebulição é causada pelo calor intenso. E se ao verificar outros fatos, vemos se são causados por outros, e ao comparar a relação existente desses fatos uns com os outros, concluímos que existe um princípio de causa e efeito, e atribuímo-lo a toda a natureza, realizamos uma abstração, porque a ideia de causa e efeito é uma abstração feita de um semelhante, que se dá numa série de fatos semelhantes. Por isso a ideia da atração dos corpos, também a de quantidade, a ideia de qualidade e as relações são abstrações. Tudo quando abstraímos é algo ideal, algo que se dá como ideia, que comparamos com um fato que se dá, e se esse fato corresponde a essa ideia, damos-lhe o "nome" dessa ideia. (1)

(1) SANTOS, M. F. dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais. 3. ed. São Paulo: Matese, 1965.