Bem

Bem. Designa, em geral, o acordo do que uma coisa é com aquilo que ela deve ser. Quando uma mesa, uma árvore, um animal realizam a sua própria essência, dizemos que são coisas boas. Quando, pelo contrário, lhes falta alguma propriedade da sua essência e, assim, a não realizam plenamente, dizemos que são más. (1) 

Bem. No sentido moral ou ético designa o conjunto das virtudes. É o oposto de mal, ou, pelo menos, assim nos parece à primeira vista. Sem muita cogitação metafísica, pode-se dizer que o "bem" é o que produz a ausência do sofrimento, mas uma ausência constante. No vício, não raro a pessoa acha um bem, porque se sente feliz; mas esta felicidade não é constante: o aprofundamento do hábito nocivo acaba levando ao sofrimento; mas no reverso deste ainda é o bem: não há mal que sempre dure, e ao final deste está o bem. Então só existe o bem? Só. O mal é a ignorância, é o bem incompreendido. Deus, que é o Sumo bem, não poderia ter criado o mal. À medida que se desenvolve nossa razão, dilata-se-nos o percebimento; o mal cessa à medida que este se amplia. (2)

Bem. (Advérbio do adjetivo bom, e substantivo). O que possui valor sob qualquer aspecto; o que é objeto de satisfação ou de aprovação em qualquer ordem de finalidade; o que é perfeito em seu gênero, bem sucedido, favorável, útil; é o termo laudativo universal dos juízos de apreciação; aplica-se ao voluntário e ao involuntário.

O bem, para os escolásticos, tem razão final. É o para que tende uma oréxis, um apetite (de petere ad, pedir para). Ora é apetecível tudo quanto é conveniente à natureza de uma coisa considerada estática, dinâmica e cinematicamente; ou seja, enquanto em sua natureza, em suas atualizações, e nas suas reciprocidades, na interatuação com o seu ambiente circunstancial. Tudo quanto é conveniente desse modo é bom. E como todo ser convém pelo menos a si mesmo, todo ser é bom; é pois um bem. Além desse bem, que todo ser é em si mesmo, pode ser um bem ainda para outro. O primeiro é um bem intrínseco e o segundo extrínseco. O primeiro é perdurante enquanto o ser é o que é, enquanto o segundo pode variar. Na ordem dos bens, uns podem estar mais próximos, outros mais remotos, e algum será o final, onde se fixe a oréxis no seu anelo. Este será o bem final. Como todo ser revela um tender para mais, uma oréxis para o bem máximo, consequentemente, o bem final tem de ser um bem máximo, Bem Supremo, que se unívoca e identifica com o Ser Supremo, fonte e origem de todas as coisas. Por isso o Ser Supremo é princípio e fim de todas as coisas, alfa e omega.

Comentários É inegável que todo ser forma uma unidade, pois um ente sem unidade seria nada. E a unidade é afirmação de si mesma, pois o ser, porque é, afirma-se. Tende por pedir a si mesmo. Há um verbo latino formado de ad e petere, pedir para, dirigir-se para, appetere, que deu o nosso apetecer, em sentido mais frequente. Com esse verbo pretendia-se dizer o que, para o qual alguma coisa tende, por corresponder, de certo modo, à sua conveniência. Assim as raízes da árvore tendem para a umidade, para a água, que é conveniente à sua natureza, como todas as coisas apetecem, o que lhes é conveniente, o que, na linguagem comum, se diz que lhes é bom (o que é um bem), que por ser conveniente à sua natureza, lhes aumenta o que há de conveniente em si mesmo e, por isso, são boas.

Na economia chama-se bem a tudo quanto pode satisfazer uma necessidade, tomado no sentido da carência que é mister aplacar, na ausência dos meios indispensáveis à conservação do indivíduo. Bem econômico é especificamente aquele que é produzido pela ação inteligente (trabalho) do homem. Assim o ar é um bem, não é, porém, econômico, porque não é produzido pelo homem, que dele normalmente se serve, de modo ilimitado, já que é um bem ilimitado. Todo ser apetece, pois, a si mesmo, o que é evidenciado pela unidade, que ainda afirma uma tensão de si mesma, que unifica e fortalece a si mesma. Desse modo, como todo ser é unidade e toda unidade é ser, todo ser é um bem (pelo menos para si mesmo). Consequentemente era uma decorrência rigorosa dos escolásticos afirmarem que bonum et ens convertuntur, que bem (bom) e ente se convertem, e metafisicamente como conceitos transcendentais de certo modo se univocam.

Por outro lado, uma unidade, um ser pode ser apetecido por outro, por lhe convir à sua natureza dinamicamente considerada e, portanto, ser um bem para outro. Nos seres inteligentes pode dar-se a consciência (saber com saber) do bem apetecido. E o homem, como ser inteligente, tem consciência do que lhe seria bom, que é sempre a completude do que lhe falta, a obtenção do que carece, a incorporação do que é mister à sua conservação, a posse do que lhe aumentaria o tônus vital e o tônus intelectual e afetivo, etc. O homem tem consciência do bem e nada lhe seria melhor que a imersão ou a posse do Ser Supremo, que lhe aplacaria todos os desejos.

Como não é possível admitir-se que o mais venha do menos, pois então o nada seria criador do ser, o que é absurdo, todas as perfeições que são naturalmente presença e não ausência de ser, devem estar contidas, desde todo sempre, no ser que é o princípio de todos os outros, chamem-no matéria, energia eterna, espírito, etc. O que importa é que tal ser é possuidor de todas as perfeições atualizadas ontem, hoje, e atualizáveis para o futuro. Todas elas estão contidas no poder daquele ser, na sua onipotência, porque ele pode tudo quanto pode ser, e é tudo, perfectivamente, todas as perfeições já atualizadas e as atualizáveis, porque nele ser, ter, haver e poder se identificam. Consequentemente é ele o bem supremo, porque ele daria a solução a todas as nossas carências e é, neste sentido, que as religiões superiores o concebem. Por isso é que o chamam de bem supremo.

É bem tudo quanto é apetecido enquanto se apetece ou é apetecido. Como todo ser é apetecido, é ele bom. Bom é de todos os seres, só dos seres, porque o nada, enquanto nada, não pode ser objeto de apetência, porque é nada; e é sempre, porque sempre o ente apetece algum bem. Consequentemente é uma propriedade transcendental do ser, pois contém tudo quanto se requer necessariamente numa propriedade.

Alguém poderá dizer, e muitos o dizem, que um ser pode desejar a sua destruição e, portanto, a negação do seu bem, o que é evidenciado à nossa experiência de muitas maneiras. Não demonstram que não há apetência ao bem, porque é julgando a sua destruição um bem, que o ente pode desejá-la. E quem quisesse o mal pelo mal, já que o mal, sendo o contrário de bem, é a privação deste? Ora, o mal enquanto mal, é apenas relativo. O bem, contudo, pode ser absoluto, como o é o do Ser Supremo, como princípio de todas as coisas. O mal sendo carência de bem é carência de ser e é relativo ao ser carecido. Um mal absoluto seria uma carência absoluta, seria nada absoluto. Como o nada absoluto é impossível, porque há o ser, o mal absoluto é absurdo, porque afirmaria o nada absoluto, que é absurdo. O mal portanto é sempre relativo. Ora ele é o que contraria, perturba, o que obstaculiza, o que destrói o bem apetecido de uma coisa. Desejar a carência pela carência seria desejar o mal pelo mal; desejar a carência porque a carência carece seria desejar então nada, nada desejar. Mas como o nada absoluto é impossível, esse desejar será o desejar a ausência de alguma coisa que é indesejada. Portanto, desejar o mal pelo mal, como o afirmam os satanistas, é a mesma coisa que desejar a destruição como libertação de uma existência dolorosa, considerada insuportável.

Vê-se que bem não é somente o que é captado pela cognição de um ser, nem muito menos o de que se tem consciência. É bem o que é conveniente à natureza da coisa considerada dinamicamente. Desse modo, os entes que carecem de cognição também apetecem bens, embora sua apetência não seja cognoscitiva. Apetecem naturalmente, movem-se para eles, ordenam-se a eles. Apetite é, portanto, ou natural ou elícito, ou seja, produto de uma deliberação, ou de um ímpeto consciente. Bem é, pois, o perfectivo que é conveniente à natureza de alguma coisa dinamicamente considerada. A ausência é considerada boa, quando impede a perturbação da conveniência da natureza de tal coisa. É considerada como tal, não é um bem, este vai consistir na ausência de alguma coisa que perturba um bem, que é sempre perfectivo. Ele é, portanto, ser e não não-ser. Consequentemente o bem é verdadeiro, porque sabemos, ser e verdadeiro se convertem.

Um bem será absoluto, se em si ou segundo a si mesmo é, por si mesmo, conveniente. Será relativo quando é conveniente para outro e não para todos. O Ser Supremo é um bem absoluto em si e para outros, enquanto este ou aquele bem são relativos em relação aos outros. Os antigos classificavam os bens em: bem honesto, aquele que aperfeiçoa uma natureza e é conveniente a ela, o que há per se conveniência com a natureza racional; bem deleitável, o que oferece algum deleite, o que aquieta o apetite; bem útil, o que não é de per si, mas em razão de outro (honesto ou deleitável), por meio do qual aquele é obtido.

Se se prestar bem a atenção, verifica-se que é em torno do bem que giram muitas ideias, não só no campo da filosofia, como no da economia e, sobretudo, no da política. Na maneira de concebê-lo é que se revela o otimismo ou o pessimismo, o desesperismo, o niilismo, etc.

Para Platão, o Bem é a suprema afirmação e a suprema afirmação é o Bem, o supremo apetecível, do qual todas as outras coisas participam e são boas na proporção dessa participação. Em outros termos, Platão afirmando que o Bem é a suprema afirmação e afirmação é o Bem, afirma que ele é o Ser Supremo e o Ser Supremo é o Bem. Quem não compreende assim, é que nada compreendeu de Platão. Como todo ser finito é ser deficiente, e é proficiente na proporção que é, e deficiente na proporção do bem que lhe falta, seu ser participa do Ser, e é bom na proporção dessa participação, porque ser e bem se convertem. Aristóteles, que sempre quis considerar Platão do ângulo idealístico, colocou a bondade na imanência das coisas e não na transcendência. Na verdade julgou dizer outra coisa do que afirmava Platão, mas apenas disse o que já estava parcialmente incluso no pensamento do grande discípulo de Sócrates que não negava o bem imanente por afirmar o bem transcendente. Os neoplatônicos, como Plotino, Santo Agostinho, Pseudo-Dionísio, Proclo, Boécio e outros deram apenas um novo colorido ao que afirmara Platão, sem contradizê-lo nem retificá-lo. A concepção de Tomás de Aquino é também platônica, embora muitos não aceitem essa classificação, pois afirma a bondade de ser na proporção da participação de ser.

No filosofar moderno surge o pessimismo, que entretanto já se evidenciara entre os gregos. Um dos maiores representantes do pessimismo moderno é Schopenhauer. Para ele, a vida é um contínuo desejo, cujo termo é inacessível. O mundo é vontade, e a realidade de todos os entes é querer-viver. A única solução humana, já que é impossível a satisfação de todos os desejos, é a mortificação de todo o desejo. Hartmann chegou a afirmar que tudo tende para um suicídio coletivo. Spengler pregou o pessimismo cultural, afirmando a inevitabilidade da decadência de toda sociedade humana superior (ciclos culturais). Nietzsche pregou uma atitude heroica ante o pessimismo. Para Jaspers marchamos para uma catástrofe e para Heidegger o homem tende para a morte que é a sua essência. Sartre afirmou que toda existência é tediosa e nauseabunda. Para os existencialistas o homem é um desesperado, tende para o nada, condenado à morte inevitável. Para os pessimistas todo ente é um obstáculo aos outros, portanto um mal. O existir finito é um mal inevitável e irrecuperável. Mas, na verdade, é um mal relativo e não absoluto. O erro está em tornar o mal, que é relativo, em absoluto. O que é fundamental no pessimismo é a afirmação de que o bem absoluto é inatingível pelo homem, enquanto ser finito. (até aí ninguém discorda deles). Mas se admitem que seria melhor se pudesse o ser humano alcançar o bem absoluto, afirmam, indiretamente, que a suprema felicidade do homem, sua tranquilidade suprema, estaria na posse desse bem. Entretanto não podem negar que o homem sabe que esse bem supremo seria a sua solução, apesar de postularem que é inatingível. Mas aceitando o primeiro postulado, e comparando-o com o segundo, concluir-se-ia que o homem seria justificado se o bem absoluto lhe fosse atingível, atualizável. É o que decorre da concepção pessimista, apesar de o negarem eles defendem que não o é.

Contudo o homem sabe que apetece ao que lhe daria uma plena satisfação, que é ser e não nada absoluto Sabendo o homem o que lhe daria a felicidade, ele terá que admitir que a felicidade é inteligível. Ora todo ser é inteligível. Se a felicidade é inteligível é ser, embora não atual para nós, mas potencial. Afirmar os postulados pessimistas como necessários seria afirmar o nada absoluto, negar totalmente o ser, negar o bem, mesmo relativo. O mal não é essencial ao mundo, mas acidental. Surge de uma relação, e não é em si, porque ele não é em si, pois é carência. O homem pode melhorar o mundo e a si mesmo. Ademais verifica-se que uns são mais infelizes que outros, enquanto outros mais afortunados, Ora o que é escalar não é da essência, porque a essência não é escalar. Só pode ser acidental. Portanto o mal é acidental, e o que é acidental não é absolutamente necessário. O pessimismo é, portanto, uma tendência com raízes e causas psicológicas. Não se pode negar ao homem a esperança, e esta é a virtude que consiste em confiar em valores superiores. Também não se justifica um otimismo, mas a compreensão da realidade da nossa existência. Se o homem sabe que há algo que lhe poderia dar a felicidade desejada, essa esperança, essa confiança nos valores superiores tem uma raiz real e não é um sonho. Aqueles que dizem que o bem é apenas subjetivo, confundem bem relativo com bem absoluto.

Bem, no sentido de moralmente bom, como tal, é um dos conceitos normativos fundamentais, ao lado dos valores do verdadeiro e do belo. É um ato que, em um caso determinado, considera-se como o moralmente preferível. Com respeito aos atos realizados é aquele que encontra aprovação; com respeito aos atos futuros é aquele que deve ser realizado. Mas o Bem difere do Dever: 1) enquanto não implica nenhuma ideia de obrigação ou de obediência a uma autoridade, mas somente de norma e de perfeição (como se fosse considerado como uma qualidade inerente a um sujeito, o que de fato é, segundo alguns filósofos, sendo negado por outros), e 2) enquanto o Bem concerne ao próprio ato que deve ser realizado e não à intenção.

Kant, para colocar os valores morais em uma posição de plena independência, com respeito a todos os outros, negou que o bem e o mal fossem valores materiais e reduziu esses princípios à conformidade ou não-conformidade a um preceito imperativo, como um "dever-ser" normativo. Como o bem se pode manifestar em atos diferentes conforme as circunstâncias de um caso determinado, Kant chega à afirmação de que o único bem incondicional é uma vontade boa. Essa concepção foi combatida pelos representantes do neo-realismo como Scheler que defende que "o bem e o mal são qualidades irredutíveis que se oferecem imediatamente à intuição emocional" que, segundo ele, é o órgão adequado para a apreensão dos valores. (3)


(1) LOGOS – ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DE FILOSOFIA. Rio de Janeiro: Verbo, 1990.

(2) EDIPE - ENCICLOPÉDIA DIDÁTICA DE INFORMAÇÃO E PESQUISA EDUCACIONAL. 3. ed. São Paulo: Iracema, 1987.

(3) SANTOS, M. F. dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais. 3. ed. São Paulo: Matese, 1965.