Arithmós

Arithmós. (do gr. arithmós, cuja raiz vem do alfa, privativo e rythmós). Para Pitágoras indica o que não é descontínuo em seu ser, o que é uma unidade de simplicidade. Assim o 3 não é apenas a soma de uma, mais uma e mais uma unidade, mas tem uma estrutura formal própria, uma unidade de simplicidade, que se aritmeticamente pode ser reduzida a 3 unidades, não pode ontologicamente porque 3 não é o resultado do processo de uma soma, ou de uma diminuição, etc., mas uma forma, que é de todo o sempre, coerente e persistente em si mesma. Vide Número.

Por ausência de escritos suficientes dos primeiros pitagóricos, e em face das deformações devidas a discípulos menores, que adulteraram não só a vida de Pitágoras como também as suas ideias, é natural que os estudiosos encontrassem grande dificuldade em examinar esse pensamento. Alguns como Zeller afirmaram que é difícil separar o que é realmente de Pitágoras daquilo que pertence a seus discípulos posteriores, o que levou alguns a posição extremada de que o pitagorismo, no início, foi apenas uma seita místico-religiosa à semelhança das thyasas órfico-báquicas, na qual Pitágoras nada mais teria sido do que um taumaturgo, e com Filolau e Arquitas é que o pitagorismo teria penetrado num terreno especulativo-científico. Para outros ele teria sido apenas um reformador moral e religioso, que encontrara um ambiente propício na Grécia. Outros buscam conciliar as opiniões extremadas, como Mondolfo, apresentando Pitágoras não só como místico-religioso, mas também como filósofo, aproveitando os aspectos positivos dos estudos de Burnett, Zeller, Joel, Stenzel, Rey, Jaeger, etc. As semelhanças que há entre o pitagorismo e o orfismo permitiram dar um cunho de fundamento a tais afirmativas. Inegavelmente há no pitagorismo, e de modo marcante, o impulso religioso. E a linguagem religiosa é patente. Mas os fundamentos simbólicos como se vê pelos primeiros parágrafos dos Versos Áureos revelam que a linguagem das religiões era apenas uma simbólica da linguagem divina, como no momento em que o homem perde o sentido do símbolo, da significação das coisas, e cai na linguagem profana. Havia, assim, três línguas, as quais pertencem aos três graus iniciáticos: a profana, a religiosa e a divina.

Quanto ao arithmós (número) são concordes quase todos os expositores de Pitágoras, que seguem mais ou menos a linha aristotélica, em que os números são a essência das coisas e não só a substância das coisas. Neste caso as coisas são compostas de números e, por sua vez, estes que são os seus elementos constituem um número que é a forma. Assim a forma é um número, mas também o é a substância primeira, a matéria. " Os pitagóricos concebem as coisas como números, porque concebem os números como coisas", afirma Aristóteles na Metafísica. E prossegue: "E como ainda ademais (tá méi álla) a Natureza parecia assemelhar-se toda ela aos números, e como os números são primeiro (proton) de Natureza, supuseram que os elementos dos números são os elementos das coisas"(Met. I 5;958 b 15). Na passagem 986 a 15 diz ele: "Ora, a este respeito, parece que eles (os pitagóricos) consideram, também, que o número é princípio, ao mesmo tempo como matéria dos seres e como constituindo suas modificações e seus estados". Ou seja: como causa material e eficiente das coisas. Era fácil, depois de caricaturizar desse modo a concepção de Pitágoras, destruí-la com leves golpes, como o pretendia fazer Aristóteles, muito embora em suas afirmações haja sempre uma ressalva, pois ao referir-se às ideias pitagóricas, sempre diz parece que (hanontai dè...).  

Para Aristóteles a Unidade suprema tem extensão e os números são sempre quantitativos, são as próprias coisas. Entre os estudiosos academicamente oficiais do pitagorismo, os números não eram os modelos das coisas, como se verá posteriormente em Platão, mas sim e apenas, as próprias coisas. Desse modo, a mimesis (imitação pitagórica seria posterior a Pitágoras (o que na verdade não tem fundamento) e Platão construiria assim um novo pitagorismo. As reproduções geométricas dos números, feitas pelos pitagóricos, apenas com o intuito didático de servir de exemplo para os iniciados em grau de paraskeiê (de preparação), passam a ser os definitivos, e todos os manuais e obras dos expositores acadêmicos do pitagorismo repetem, monotonamente, a mesma coisa, sem descuidarem de repetir o tom de superioridade de Aristóteles e tratar Pitágoras como um ingênuo taumaturgo. Daí a simbólica dos números, que se encontra nas obras dos pitagóricos, e que servia apenas para abrir o caminho da iniciação, passa a ser não símbolo, mas o simbolizado.

Uma das características das épocas de decadência intelectual é a perda da significabilidade dos símbolos, que passam a ser considerados como simbolizados, o que já era patente na época de Sócrates, Platão e Aristóteles, em que a Grécia era assoberbada pela decadência inevitável. Aristóteles reproduz essas passagens, sem compreender devidamente o sentido simbólico, atribuindo-lhe o caráter de simbolizado. Assim o 1 é o limitado-ilimitado. Mas a cópula é, aqui, não é entendida como símbolo, mas como ser, positivamente apenas.

Jamais foi bem compreendido o sentido da krásis pitagórica. A união dos contrários foi entendida do modo mais vulgar, e não se percebeu que há uma transimanência, pois a krásis não é apenas uma reunião de contrários, mas uma superação formal, que dá surgimento a uma nova tensão. Desse modo a krásis, o kosmesein pitagórico, é considerado como sendo apenas um vínculo, que reúne os elementos opostos das coisas. A krásis seria apenas a harmonia. Assim, o que constitui as coisas são os números (como elementos materiais) e a harmonia, que os coordena. O universo é, apenas, a harmonização dos números, uma espécie de unidade de múltiplos (quase atomizados, senão atomizados).

Para outros, os Versos Áureos são apenas "um conjunto de sentenças soltas e desconexas, recompiladas por Lysis". E os símbolos pitagóricos, máximas ridículas, ou escritas numa linguagem enigmática, desconhecendo tais críticos que em todas as ordens secretas usam-se máximas enigmáticas, inteligíveis apenas pelos iniciados. O pensamento teológico do pitagorismo é então apresentado de maneira ridícula e afirmam não terem eles alcançado o conceito de um Deus único e transcendente. Os fragmentos de Filolau e de Arquitas demonstram o contrário, pois Filolau descreve Deus como o Senhor de todas as coisas, único, eterno, imutável, imóvel, sempre igual a si mesmo. Como então conceber que essa Mônada, por divisão, geraria todos os outros seres? (1)

(1) SANTOS, M. F. dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais. 3. ed. São Paulo: Matese, 1965.