Alma

Alma. Nos gregos, aparece a crença amplamente exemplificada em Homero, de que o homem possui um "duplo", uma sombra da sua existência corporal, a psique (psykhê), representada como distinta e como separável do corpo sem, entretanto, ser concebida como uma realidade superior; foi antes um sopro que deu a vida. Também o livro do Gênesis diz que "Deus insuflou a vida em Adão", um outro corpo mais fino e sutil que não se podia pegar com as mãos, que no sono, temporariamente, se podia separar do homem e em sonhos até aparecer e colocar-se diante dele, e que na morte deixa o corpo definitivamente pela boca ou por um ferimento para continuar em lugar destinado às sombras humanas, uma existência triste, que não se pode mais chamar de vida.

Dotadas sem mais substancialidades e até de força ativa aparecem as almas dos mortos, que foram objeto de venerações e de cultos por parte dos seus descendentes. Entre os romanos aparece a crença na influência dos manes (originalmente dos "bons", de um adjetivo antigo manus,  bom), das almas dos mortos, que se acham com os deuses do inferno. No culto de Dioniso, introduzido da Trácia, a alma ganha uma posição mais independente do corpo e uma valoração superior. A inclusão da alma no corpo toma o aspecto de um castigo. A mansão própria da alma não é o Hades, mas um mundo superior às estrelas. A volta a este mundo divino é o objetivo da alma e, portanto, o objetivo do homem, do qual a alma forma só a parte superior. No êxtase (de extasis, de ex,  fora e stásis, colocação), efetuado pela música sagrada ou pelo jejum, a alma separa-se temporariamente do corpo, reunindo-se a Deus e tornando-se inspirada por ele. Aqui aparece um dualismo muito pronunciado entre corpo e alma que, porém, é ético, antes que metafísico. Enquanto a experiência ética já tinha se elevado a este ponto, a filosofia natural não distinguiu entre psique e cosmos.

Em Anaxágoras a psique faz parte do Nous, que move o universo, antecipando com isso um ponto de vista que considera a psique não só em relação ou oposição ao corpo, mas também ao espírito (Nous). Os pitagóricos, em parte, procuraram estabelecer um acordo entre a psique e as realidades cosmológicas, concebendo aquela como a "harmonia do elemento corpóreo". Mas esse papel meramente funcional não está de acordo com o fato da substancialidade da alma, indispensável pressuposição da crença na transmigração da alma, atribuída aos pitagóricos.  

As diferentes atribuições da alma, enquanto constituem valorações positivas, foram reunidas e interpretadas por Platão. Segundo ele a psique move a si mesma, é imortal e congênita aos deuses e permanece na visão pura das ideias eternas, que contrastam com a corruptibilidade do mundo visível e, ainda cônscia daquele mundo absoluto do ser verdadeiro, a vida ligada ao corpo significa, uma existência inferior.

Para Aristóteles a psique é o princípio ativo do movimento e da vida, a forma do corpo e a enteléquia, como o princípio peculiar de ordem dos elementos corpóreos. Conforme as diferentes manifestações da atividade da alma, distingue a alma vegetativa, a animal e a racional, as quais não podem ser separadas do corpo. Uma parte está dentro da alma racional, porém outra vem de fora e sobrevive à existência corpórea, o nous poietikos, o nous ativo.  A alma é por Aristóteles definida como "a primeira perfeição (enteléckheia), que é ato de um corpo natural orgânico" e ainda como "o primeiro princípio pelo qual vivemos, sentimos, nos movemos e pensamos". Esta doutrina foi aceita pelos escolásticos em geral e, em especial por Tomás de Aquino, que a considerou como a forma substancial do corpo.

A existência de um princípio independente do corpo tornava-se uma hipótese necessária, pois até os estoicos se viram na contingência de admitir um "pneuma"(de pneô, soprar) como intermediário entre a psique e o corpo. Paralelamente se desenvolveram outras teorias, mais naturalistas, que se preocuparam, em primeiro lugar, pelo problema da localização da alma e das suas diferentes partes, quer no cérebro, quer em outros órgãos do corpo humano. Contrariamente à acepção do pneuma entre os estoicos, a doutrina do apóstolo Paulo como a teologia judaico- alexandrina (Filon e outros neoplatônicos) colocam o pneuma acima da psique, porque é o sopro divino, aproximando-se assim à concepção moderna do espírito, que é menos fisiológico e mais sistencialmente puro do que psique. O pneuma paulino é o hagionpneuma, (de hagios, Santo, Espírito Santo) que simultaneamente é o próprio Deus e habita na alma do homem. Este pneuma se identifica com o logos e o nous, e se opõe, por ser mais universal e superindividual, à psique, sempre essencialmente destinada a um corpo. A psique é, portanto, individual, mas por isso o problema da substancialidade e consequentemente da sobrevivência, prende-se sempre à psique e não ao espírito.

Os escolásticos, quando trataram a alma sob o ângulo filosófico, deram mais relevo à concepção aristotélica, como forma do corpo, não sem certas dificuldades na questão da existência da forma separada do corpo. Não desertar da substancialidade da alma foi o ditame que lhes veio da teologia, para não pôr em perigo a doutrina da imortalidade da alma humana individual. Aristóteles, porém, com pronunciadas tendências de naturalista, em sua psicologia (De Anima, Peri Psykhôs) se baseava principalmente em fatos de observação e não tinha nenhum preconceito em favor da substancialidade da alma.

A questão fica aberta: como tratar o problema da substancialidade da alma com meios puramente filosóficos?

Kant responde: A ideia da alma humana, do eu, está fundada na Psicologia Racional. Ela demonstra que a alma não é algo material, que é uma substância que permanece eternamente, que é simples (não constituída de partes) e que é individual, um eu. Em verdade, porém, pela experiência, só sabemos que existe a "unidade transcendental de consciência", porque se não fosse assim seria impossível a experiência. Mas o homem não pode saber se realmente existe tal "portador" da unidade transcendental, se é matéria ou espírito, que lhe ocorre quando concluiu o processo da experiência (quer dizer, depois da morte). Se então não podemos saber nada a respeito da substancialidade da alma, podemos — ainda segundo Kant — pelo menos saber donde veio essa ideia pairar em nossa representação: alma. Mundo e Deus não são mais que ideias da razão pura, produzidas sobre a mesma base e com o mesmo fim, como as outras ideias da razão. Todos os fatos da experiência externa são abarcados por uma ideia: Mundo. Todos os fatos da experiência interna, psíquica, são compreendidos em uma ideia: Alma. E, aplicando a razão às categorias de substância, causa e necessidade, e a essas duas esferas da experiência, surge a ideia de Deus.

A filosofia moderna é caracterizada por uma aversão quase unânime à teoria da substancialidade, concebendo a alma como o conjunto das suas propriedades ou como, no caso da Teoria da Atualidade, como a mera soma das suas atividades conscientes. Com as teorias da Não-substancialidade também o conceito de "almas coletivas" perde seu caráter análogo e metafórico, e pode ser erigido com pleno direito ao lado da alma individual. Mas a aceitação de uma alma coletiva significa pouco se ela não passa de mera soma das atualizações dos indivíduos que fazem parte da respectiva coletividade. Todavia, foi Spann quem atribuiu à alma coletiva um valor independente pela observação de que o pensar, o querer, o amar, o odiar "em companhia", é produtivo, quer dizer: que a atividade de uma alma coletiva é capaz de criar valores, que não se podem esperar da atividade individual. Essa ideia funda uma nova subjetividade coletiva que, porém, não é substancialidade. Vide Espírito. (1)

(1) SANTOS, M. F. dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais. 3. ed. São Paulo: Matese, 1965.