À espera da República («O Ano de 1909»)

António Rego Chaves

A Biblioteca Nacional de Portugal tem levado a cabo, em vésperas do Centenário da Proclamação da República, mostras documentais ilustrativas do percurso político do País nos anos que precederam imediatamente o de 1910. As iniciativas são acompanhadas de catálogos que incluem cronologias dos acontecimentos mais relevantes do período a que dizem respeito, reproduzindo alguns dos mais significativos testemunhos publicados na época, designadamente nos órgãos de comunicação social.

Ao primeiro volume, «1907 – No Advento da República», seguiu-se o intitulado «1908 – Do Regicídio à Ascensão do Republicanismo». Agora, a par da respectiva mostra, surgiu «O Ano de 1909», apresentado por Amadeu Carvalho Homem, professor da Universidade de Coimbra.

Salienta o historiador: «O regicídio escrevera o epitáfio da monarquia em Portugal. O que sobejava era uma Corte em estado de descrença, onde apenas a voz do Conde de Arnoso – secundada, no exterior, pela do plebeu Ramalho Ortigão – se elevou para exigir que as responsabilidades homicidas do drama do Terreiro do Paço não ficassem impunes.» (…) «D. Manuel II estava manifestamente impreparado para as responsabilidades da alta função em que se viu investido. Não fora educado para tal, e o seu próprio feitio, reservado e fugidio, contrastava em tudo com o mundanismo loquaz e com a fortaleza de convicções de que o seu pai dera provas. Por isso, não surpreende que se tenha entregue à vigilante tutela que lhe foi oferecida por sua mãe, a rainha Dona Amélia. O drama familiar recentemente vivido concorrera, quanto a esta, para fazer compensar a recente viuvez com o enfeudamento recorrente à vivência religiosa. Dona Amélia rodeou-se de directores espirituais jesuítas, dominicanos e lazaristas, tornando também o seu filho excessivamente permeável a tipos de mentalidade em que preponderava a devoção beata.»

«Não era pacífico na capital do reino, prossegue Amadeu Carvalho Homem, o clima social. Qualquer desprevenido observador poderia assinalar a crispação entre a nobreza afecta ao Paço e a burguesia nobilitada, desejosas de assistirem à consolidação do trono de D. Manuel II, e toda uma arraia-miúda de trabalhadores por conta de outrem, e de uma boa parte dos sectores da pequena e da média burguesias apoiando, de modo claro ou sub-reptício, a estratégia sediciosa.»

Os textos de 1909 incluídos neste pequeno mas precioso volume, tal como os anteriores coordenado por Manuela Rêgo e bem servido pela iconografia, são assinados por conhecidas figuras da época, tais como Brito Camacho, Raul Proença, Branca de Gonta Colaço, Guerra Junqueiro, Ana de Castro Osório, José do Vale, Maria Veleda, Teresa Deslandes, João Chagas, Alfredo Pimenta, Gomes Leal e Marinha de Campos.

Gostaríamos de chamar uma muito especial atenção para dois documentos notabilíssimos, o assinado por Ana de Castro Osório, com o título «Questão do divórcio», publicado no «República», e «O sufrágio feminino», da autoria de Maria Veleda, que viria a ser julgada e condenada sob a acusação de abuso de liberdade de imprensa, inserido no «A Vanguarda».

Diz Oliveira Marques, na sua «História de Portugal»: «A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, fundada em 1909, desempenhou notável papel [na emancipação gradual do sexo feminino], mau grado o escasso número das suas filiadas (menos de 500 em 1910). Não pode esquecer-se o que foi a luta inglória dessas mulheres, (dirigidas por senhoras enérgicas e cultas como Ana de Castro Osório, Adelaide Cabette, Maria Veleda e outras) para criar um novo Portugal, aberto às ideias modernas e encerrado à ditadura tradicional do outro sexo.»

É precisamente Ana de Castro Osório, hoje quase só recordada por ter sido uma pioneira da literatura infantil em Portugal, mas autora de «As Mulheres Portuguesas» (1905) e de «A Mulher no Casamento e no Divórcio» (1911), que assim se refere, com toda a energia das suas convicções, a esta última questão: «Querer hoje apertar a sociedade portuguesa, tão fortemente impulsionada para o caminho do progresso, nos moldes arcaicos de um passado já morto, é tentar o impossível, é chamar à revolta todos os espíritos, é preparar a si mesmo a mais forte e completa ruína. Eis o que sucede com a lei do divórcio, que uma grande maioria reclama e que os elementos retintamente conservadores tentam contrariar, não vendo que violentam assim as consciências, e afastam aqueles que, sinceramente crentes, abominam a intolerância e o retrocesso.» (…) «O que queremos é o divórcio na lei civil, porque é com as suas leis civis que um povo se governa hoje; o tempo das leis religiosas passou, pelo menos para os povos que chegaram a um grau de civilização em que se apela para a ciência e para a lei em vez de se esperar o milagre divino.»

Quanto à professora e escritora Maria Veleda, ficamos a dever-lhe esta lúcida e corajosa síntese da condição da mulher de há cem anos: «É mãe, mas não pode ser tutora; se possuir uma fortuna e casar, deixará de dispor livremente dos bens próprios, precisando do consentimento do marido para realizar quaisquer transacções; se incorrer em adultério, sofrerá penas maiores do que o homem, em igualdade de circunstâncias; finalmente, é forçada a pagar impostos e não se lhe reconhece o direito de os discutir. Ora isto é simplesmente revoltante! É bárbaro e iníquo. No entanto, a mesma lei que assim trata a mulher, considerando-a eterna menor e eterna interdita, admite que essa criatura tão desprezada, por um simples acaso de hereditariedade, possa governar um povo, do alto de um trono – não podendo ser eleitora, mas podendo ser rainha. Porquê? Onde está lógica? Onde está a justiça?» (…) «A missão de governar bem uma nacionalidade, não será porventura mais difícil do que o acto, embora grave e muito ponderado, de votar uma candidatura?» No entanto, considerava que «as eleições são apenas um paliativo, não um remédio radical». E concluía: «Esse remédio não sai da boca das urnas – é mais enérgico – e sai da boca da revolução.» Sabia bem do que falava, como mulher e como cidadã…

«O Ano de 1909», Biblioteca Nacional de Portugal, 2009, 103 páginas