Malaparte (Biografia por Maurizio Serra)

Técnica do golpe de rins

António Rego Chaves

À beira da morte – estava irremediavelmente condenado por um cancro – muitos rodeavam, num último confronto de hipocrisias e dogmatismos, sem dúvida obsceno, a sua cama de hospital na capital italiana: amigos e ex-inimigos, admiradores e confrades do jornalismo e da literatura, jesuítas e dirigentes comunistas. Reivindicavam, em plena era de Pio XII e Togliatti, o seu cadáver, a sua alma, uma sua obra no Index, o seu passado, o seu futuro. Venceu a multissecular mas bem oleada engrenagem do Vaticano, como seria de esperar no ano de 1957, em Roma, na era da Guerra Fria.

Disputa deveras curiosa, esta, entre uma decrépita hierarquia católica e uma ancilosada hierarquia comunista, sobretudo se nos lembrarmos de que, como anota o autor, «desde os anos 1930 Malaparte tinha entendido que as estruturas mentais, organizacionais, hierárquicas, piramidais do comunismo bolchevique e do nacional-socialismo assentavam no modelo eclesiástico. O partido único era em ambos os casos decalcado na Igreja universal, com a sua salvação pela classe ou pela raça e o guia infalível à cabeça».

Curzio Malaparte fora um dos mais influentes intelectuais fascistas do seu tempo, em Itália como em França. Tão intelectual, aliás, quanto escritor, tão escritor, aliás, quanto jornalista. Narrador, sempre, um empolgante narrador com muitas ideias, sabe-se lá se demasiadas, que não poucas vezes se chocavam entre si e chocalhavam no cérebro do leitor, impossibilitando definições politicamente transparentes. Talvez tenha sido fascista apenas por estética e golpe de rins, estalinista apenas por estética e golpe de rins, maoísta apenas por estética e golpe de rins. Fosse ele apenas um homem sem ética e um vira-casacas entre tantos milhões de homens sem ética e de vira-casacas, decerto não seria lido ainda hoje, mais de meio século depois da sua morte. Leiamo-lo, pois, ainda que nem sempre saibamos distinguir o que viu e contou daquilo que não viu e inventou ao transfigurar a realidade.

O diplomata Maurizio Serra, com louvável sentido do equilíbrio, apostou em apresentar-nos o resultado de longa investigação: acima de seiscentas páginas de factos, documentos, depoimentos. O que fica é uma boa síntese da história política da Itália de quase seis decénios do século XX, onde se encontra inserida, por mão hábil, a biografia de Curzio Malaparte. Sólida, robusta biografia «à inglesa», diga-se de passagem, ainda que redigida em francês por um italiano. Um italiano adepto da democracia, coisa que o biografado nunca, mesmo nunca, foi, embora tivesse sem rebuço saudado o regime político dos Estados Unidos da América, após o desfecho da Segunda Guerra Mundial. Sempre oscilou entre radicalismos, de quando em vez disfarçando-os. Mas, de preferência, ao escolher o seu campo, apostava num vencedor certo. Confessou, com um impudico cinismo: «Prefiro os vencidos, mas não saberia adaptar-me à condição de vencido.»

Em jornais, em revistas, em livros, em cartas, muito mentiu por sistema. Disse ter estado onde nunca esteve, disse ter combatido aonde nunca combateu, disse ter presenciado o que nunca presenciou, disse ter vivido o que nunca viveu. Para mentalidades tolerantes, era um amoral; para os intransigentes, um imoral; para quase todos, homem de grande engenho.

«Kaputt», «A Pele» e «Mãe Apodrecida» (obras inseparáveis da Segunda Guerra Mundial, há muito editadas no nosso país) são talvez os mais notáveis livros de Malaparte. Ouçamos Maurizio Serra: «Em nenhum lugar esteve menos ‘engagé’ do que nesta apocalíptica tríade, em nenhum lugar se remeteu tanto ao papel de memorialista, durante encontros muitas vezes imaginários, mas que nunca perdem um fundamento de verdade.» (…) «Nada é inteiramente verdadeiro nem completamente falso.» (…) «Malaparte pinta-nos um mundo abalado nos seus fundamentos, onde se tornou quase impossível distinguir o verdadeiro do falso.» Ou seja: não é romance nem reportagem: será verosímil – mas pode nunca ter acontecido.

Confidenciaria a Maria Antonietta Macciocchi, tendo então já em vista a sua derradeira viagem ao estrangeiro, com demorada escala na URSS: «Quero ir à China, é preciso encontrar um meio de me fazer chegar até Pequim, é lá que o socialismo joga a sua última oportunidade.» Uma vez chegado, com a ajuda do PCI, à União Soviética, remeterá à então dirigente comunista diversas cartas, numa das quais, em Outubro de 1956, explicita o seu estado de espírito: «Compreenderá o significado do que escrevo: comparação entre Moscovo de 1929 e de 1956. Em que clima, em que circunstâncias, nasceu o estalinismo que eu vi nascer, digamos, justamente nessa época crucial. Os operários estavam com Estaline. Havia necessidade de um chefe que levasse a cabo o Primeiro Plano Quinquenal e salvasse a Revolução. Hoje tudo mudou. Atitude reservada dos operários, das massas, em relação a Estaline [falecido em 1953]. Reservada, mas crítica. Ele enganou-se, pois agora, por acaso, respira-se um ar novo [após a subida de Khrushchev ao Poder e o XX Congresso do PCUS]. O ‘velho’ está morto.»

Comenta o autor: «Raramente encontramos na sua obra páginas tão ternas – a palavra não é inapropriada – como as que consagra à paisagem, à arte, à arquitectura, mas sobretudo à vida quotidiana do povo chinês, que persiste na sua longa marcha pela história, apesar das invasões estrangeiras e das lutas fratricidas.» Mas Malaparte não fica por aqui; recebido por Mao, que lhe afirma ter o seu ensaio «Técnica do Golpe de Estado» como livro de cabeceira, conceberá esta inqualificável apreciação: «O que surpreende e encanta todos os observadores estrangeiros da revolução chinesa é a sua falta de sectarismo e de fanatismo, o seu espírito de conciliação, o seu gradualismo, o seu sentido profundo de equilíbrio e de humanidade.»

Depois de Mussolini e de Estaline, o «ídolo» passara a ser Mao. Não teve tempo para muito mais: poucos meses depois morreria em Roma, tanto quanto foi possível averiguar brutalmente «convertido» ao catolicismo.

Maurizio Serra, «Malaparte – Vies et Légendes», Grasset, 2011, 637 páginas