D. Carlos e as aspas da ditadura (Rui Ramos)

António Rego Chaves

Rui Ramos possui três credenciais para escrever uma biografia credível de D. Carlos: é o autor do VI volume da História de Portugal dirigida por José Mattoso – «A Segunda Fundação (1890-1926)» –, assinou um estudo intitulado «João Franco e o Fracasso do Reformismo Liberal» e co-coordenou a obra «Dicionário Biográfico Parlamentar. A Monarquia Constitucional, 1834-1910». Lêem-se, no entanto, penosamente estas mais três centenas de páginas de letra miudinha, compactas, recheadas não só de inúmeros pormenores de interesse variável como de interpretações por vezes demasiado pessoais acerca da actuação das personagens de que se ocupa e da época em que elas viveram.

Logo de entrada, o autor esclarece que não nos oferece «a biografia de um indivíduo chamado Carlos de Bragança Saxe-Coburgo-Gotha, que por acaso foi rei de Portugal», mas «a biografia de um rei». E acrescenta: «Neste livro, não vou tentar fazer uma aproximação intimista ao indivíduo, mas uma análise política do rei. Não procurarei descrever a corrente da sua consciência, mas analisar as suas decisões em contexto. Este é um livro de história, não é um romance, nem um ensaio especulativo. Só poderemos ir até onde nos levarem os documentos. A interpretação de D. Carlos neste livro assenta numa reflexão sobre a cultura política do liberalismo português, e mais especialmente sobre o lugar e o papel do rei nessa cultura.»

Num enfático registo oxoniano, Rui Ramos arreda, pois, a «corrente de consciência» do seu biografado, o «romance», o «ensaio especulativo». Está no seu pleno direito. Mas, ao dar crédito sem grandes cautelas ao conteúdo de algumas cartas de D. Carlos, ao imaginar o que teria sido Portugal sem o Regicídio, ao transcrever a fala de uma personagem de Agustina Bessa Luís para nos transmitir a ideia de que o rei «era demasiado inteligente para rei», ao interpretar certos factos históricos atribuindo sem provas inconfessadas intenções ao monarca, não terá o autor resvalado precisamente para onde garantiu que não resvalaria? Mais ainda: quando manifesta a sua simpatia por D. Carlos ou pela «ditadura» de João Franco (as aspas são de Rui Ramos e há que interpretá-las politicamente), ou quando ostenta a sua aversão por tudo quanto é republicano ou maçónico, estará o autor a cumprir o que nos prometeu, isto é, escrever uma rigorosa análise histórica, nada mais do que um inocente livro de história?

Apesar de todas as interrogações acima formuladas, esta é, sem dúvida, uma obra que muito nos ensina acerca do reinado de D. Carlos. Do Ultimato inglês de 1890 ao golpe do 31 de Janeiro de 1891 no Porto, do «rotativismo» dos Regeneradores de Hintze Ribeiro e dos Progressistas de José Luciano de Castro à ditadura franquista, da «guerra religiosa» entre católicos e anticlericais aos problemas internacionais, das relações com a Geração de 70 e com os Vencidos da Vida às querelas institucionais com a rainha D. Amélia, da procura do justo meio entre constitucionalismo e absolutismo, ultramontanismo e regalismo, anglofilia e anglofobia, militares «africanistas» e políticos politiqueiros, republicanos maçons e clericais reaccionários, de tudo Rui Ramos nos vai dando conta. Desenha com escrupulosa minúcia o quadro que permite integrar o monarca na sua época e encontrar explicação para as suas intervenções, seja fomentando o «rotativismo», ao demitir e nomear governos, ora Regeneradores, ora Progressistas, seja seleccionando os principais lideres partidários, seja, já em desespero de causa, optando em Maio de 1906 por entregar o Poder a João Franco e, cerca de um ano depois, por encerrar as Cortes e dissolver a Câmara dos Deputados.

A verdade é que, para João Franco, nunca houvera «rotação», apenas «oligarquia rotativa». Hintze Ribeiro e José Luciano ter-se-iam limitado a manter uma fachada para disfarçar a cumplicidade que os unia na exploração conjunta do Estado. Impondo-se pôr termo à debilidade do governo e à imoralidade dos políticos, pretenderia o novo Presidente do Conselho dar início a uma «Segunda Regeneração», na sequência da que, no século XIX, a partir de 1851, fora simbolizada por Fontes Pereira de Melo.

O republicano João Chagas reconhecera quatro qualidades a João Franco: «era rico» (indício de que não visaria servir-se do erário público em proveito próprio, ao contrário do que fizera D. Carlos com os «adiantamentos»), «tinha uma fé ilimitada em si mesmo», «era eloquente» e queria aplicar «um programa de reformas dos costumes políticos». Mas o descontentamento não cessou de aumentar, culminando com a malograda tentativa revolucionária republicana de 28 de Janeiro de 1908.

A 1 de Fevereiro, Manuel Buiça e Alfredo Costa matam D. Carlos. Para o autor, «duas coisas são certas: 1º) os conspiradores do 28 de Janeiro, Dissidentes e Republicanos, tinham discutido um atentado contra o rei; 2.º) os dois regicidas mortos faziam parte de grupos revolucionários Republicanos integrados na conspiração do 28 de Janeiro.» O mais seria especulação. Talvez, se não depreciarmos o papel dos monárquicos envolvidos no 28 de Janeiro, os «buissidentes» José de Alpoim, Egas Moniz, José Pinto dos Santos, António Centeno e os viscondes de Ameal e de Pedralva. Talvez. Sintetiza Rui Ramos: «Em 1906, D. Carlos iniciou um processo de rearrumação das forças políticas. Numa jogada arriscada, confrontou aqueles que tinham sido até aí os pilares da monarquia, os chefes dos antigos partidos. Ao político em que apostou para protagonizar a mudança do sistema partidário faltava talvez em tacto o que sobejava em vontade. Mas o rei estava confiante: a prova disso, paradoxalmente, foi o modo como morreu no dia 1 de Fevereiro de 1908, quando se dispôs a entrar em Lisboa sem escolta, três dias depois de uma revolução falhada.» Mas que «rearrumação das forças políticas»? Será possível falar do Regicídio sem evocar as afiadas aspas da ditadura de João Franco e a activa cumplicidade nela do monarca, seu patrocinador e sustentáculo?

Rui Ramos, «D. Carlos», Círculo de Leitores, 2006, 392 páginas