Einstein, Freud e a violência

António Rego Chaves

Corria o ano de 1933, marcado pela ascensão de Hitler ao Poder, quando Albert Einstein (1879-1955) e Sigmund Freud (1856-1939) fizeram editar, em alemão, inglês e francês, duas cartas sobre a guerra. Tendo como pano de fundo uma Sociedade das Nações que já então emitia inequívocos sinais de incapacidade para «civilizar» as relações entre os governantes do Planeta, os dois génios cujas concepções haviam estilhaçado inúmeras «certezas» científicas instituídas até finais do século XIX unem-se numa tentativa de contribuir, com o peso do seu incontestável prestígio intelectual, para impor a ideia segundo a qual urgia encontrar vias adequadas para conduzir a Humanidade a uma paz estável e duradoura. A sua inquietação viria a revelar-se plenamente justificada: apenas seis anos depois, eclodia a II Guerra Mundial.

O voluntarismo de Einstein contrasta com o aparente conformismo de Freud, que já então publicara duas obras capitais capazes de servir de suporte a uma rigorosa análise do problema, «O Futuro de uma Ilusão» (1927) e «Mal-estar na Civilização» (1930). Quanto a Einstein, era bem conhecido pelo seu pacifismo radical, que o conduzia a não desistir de encontrar uma solução prática que libertasse os homens da ameaça de novas guerras. No entanto, estava bem consciente das suas limitações, ao escrever a Freud que só ele seria capaz de esclarecer cabalmente a questão que os ocupava, devido ao «profundo conhecimento da vida instintiva do homem» que possuía. Em suma, confiava na possibilidade de o saber da Psicanálise apontar os meios educativos capazes de superar as bestiais características da espécie humana que se encontrariam na origem de todas as guerras. O criador da Teoria da Relatividade estava ciente de que todos os Estados deveriam abdicar de parte da sua soberania para que potenciais conflitos pudessem ser evitados por um tribunal internacional com efectiva capacidade de pôr em prática as suas decisões, tal como estava bem atento à «apetência política de poder» das classes dirigentes e à actuação dos «indivíduos para quem a guerra, a fabricação e o tráfico de armas nada mais representam do que uma ocasião para retirar proveitos particulares». Persistia, não obstante, em considerar que, apesar de as escolas, os jornais e as organizações religiosas serem por via de regra controlados pelos poderes económicos e políticos, seria viável «tratar» ou mesmo «curar» a «psicose colectiva» que conduzia os povos a ser dizimados nos campos de batalha.

Freud aceita, tal como lhe sugere Einstein no final da sua carta, «desenvolver o problema da pacificação do mundo à luz das suas novas investigações». Mas alerta desde logo para a sua «incompetência» no sentido de levar a cabo o que dele poderia ser esperado. Partindo da distinção entre direito e violência, não se abstém de sublinhar que todos os conflitos de interesses entre animais – incluindo os homens – são sempre resolvidos pela violência, concluindo que o direito é, afinal, também uma violência, não a exercida por um indivíduo mas por uma comunidade. Pior ainda: o direito da comunidade não é mais do que a expressão das desigualdades de poder, dado que as leis são elaboradas pelos dominadores, que cedem um mínimo de prerrogativas aos dominados. Seguem-se mais violências, ora entre os dominadores, que não desistem de se sobrepor uns aos outros, ora por iniciativa dos dominados, que não renunciam a alcançar os direitos que a lei lhes não reconhece. Surgem insurreições, guerras civis, revoluções. Ora, se até no interior de uma comunidade a violência não pode ser evitada, que dizer dos conflitos entre cidades, países, impérios? Demonstrada a impotência da Sociedade das Nações – a cujas decisões, afinal, apenas as potências dominadas seriam coagidas a obedecer, perante a ameaça do uso da força pelas potências dominantes, em nome de uma mítica «comunidade internacional –, que fazer? Lembra Freud: «Não faltam pessoas a predizer que unicamente a penetração universal da ideologia bolchevista poderá pôr termo às guerras – mas de qualquer forma estamos muito longe de um tal resultado, e talvez não conseguíssemos alcançá-lo senão depois de horrorosas guerras civis.»

Concebendo o homem como portador de duas categorias de instintos, os que levam a conservar e unir (eróticos ou sexuais) e os que conduzem a destruir e matar (pulsão agressiva ou pulsão destruidora), observa: «Por vezes, quando ouvimos falar das crueldades da história, temos a impressão de que os móbiles idealistas não serviram senão de máscara aos apetites destruidores; noutros casos, quando se trata por exemplo das crueldades da Santa Inquisição, pensamos que os móbiles ideais foram colocados em primeiro plano, no consciente, e que os móbiles destruidores lhes forneceram, no inconsciente, um suplemento de força. Ambas as possibilidades são plausíveis.»

Não obstante ter pensado que «tudo o que trabalha para o desenvolvimento da cultura também trabalha contra a guerra», o fundador da Psicanálise considerava que seria inútil pretender pôr cobro às tendências destruidoras dos homens e acentuava: «Os bolchevistas esperam conseguir suprimir a agressão humana assegurando a satisfação das necessidades materiais e, ao mesmo tempo, instaurando a igualdade entre os beneficiários da comunidade. Considero isso uma ilusão. Eles estão, de momento, minuciosamente armados e o ódio que mantêm em relação a todos os que não são dos seus não constitui o menor auxiliar para assegurar a coesão dos seus partidários.» Em última análise, o problema não consistiria em suprimir a inclinação humana para a agressão, mas em canalizá-la, de forma a ela não encontrar a sua expressão na guerra.

Ao sustentar que «o Estado ideal residiria naturalmente numa comunidade de homens que tivessem submetido a sua vida instintiva à ditadura da razão», o pacifista que foi Sigmund Freud apressa-se a acrescentar que se situa já no terreno da utopia. Os factos históricos posteriores a 1933 só têm vindo confirmar o seu sábio pessimismo…

Albert Einstein e Sigmund Freud, «Pourquoi la guerre», Rivages poche, 2005, 67 páginas