O temor de um agnóstico (Julian Barnes)

António Rego Chaves

Tínhamos como notáveis referências contemporâneas sobre o tema da morte pelo menos três ensaístas: Vladimir Jankélévitch, Philippe Ariès, Edgar Morin. Associemos-lhes, agora, Julian Barnes, com este seu «Nada que temer» (tradução castelhana para o título «Nothing to Be Frightened Of»). Ao contrário do que se passava com as obras dos três pensadores franceses («A Morte», «O Homem perante a Morte», «O Homem e a Morte»), o tom utilizado nesta é o próprio da autobiografia – ainda que sem excluir a dimensão da meditação que a aproxima das acima mencionadas.

Os professores de Ontologia não vêem em geral com bons olhos quem penetra nas suas coutadas sem lhes pedir licença – mas é o que Julian Barnes (nascido em 1946), conhecido em Portugal sobretudo como autor de textos de ficção, não abdica de fazer. O resultado fica à vista: é possível lê-lo – e entendê-lo – com um mínimo de cultura especificamente filosófica. E a literatura séria – é o caso – impõe-se também como autêntica filosofia.

Ao estudar em Oxford, depois de se formar em línguas modernas, o autor cursou Filosofia «durante um par de trimestres», mas apercebeu-se de que esta parecia estar mais interessada no processo de filosofar do que no propósito que lhe havia atribuído de antemão: «dizer-nos como é o mundo e o melhor modo de viver nele». Regressou, pois, à literatura, «que era a que melhor nos dizia e nos diz como é este mundo» e abandonou o filosofar de matiz anglo-saxónico, isto é, não-existencial, representado pelo empirismo lógico de um A. J. Ayer. Bem dizia Santayana, de educação saxónica mas de origem hispânica, que «uma boa maneira de pôr à prova a importância de uma filosofia é perguntar o que ela pensa acerca da morte».

«Não creio em Deus, mas sinto a falta dele.» Com esta frase («I dont believe in God, but I miss Him») o escritor-filósofo inicia o seu livro e torna inseparáveis as questões da morte e do Além. Sendo um agnóstico, porque «sabe que nada sabe» acerca da existência de Deus – não um ateu, que poderá mostrar-se tão dogmático quanto um crente fundamentalista, porque desconhece a dúvida – Barnes socorre-se de Pascal, do Wittgenstein dos «Cadernos», de Charles Du Bos e do seu «réveil mortel» (à letra, «despertador mortal»), que nos alerta para o facto de todos os seres racionais, sem exclusão de ninguém, de nenhum «eu», estarem condenados a morrer. E revela-nos que pensa na morte «pelo menos uma vez por dia, nas horas diurnas» – fora «os intermitentes ataques nocturnos».

Recorda Chostakovitch: «O medo da morte talvez seja a emoção mais intensa que existe. Às vezes penso que não há um sentimento mais profundo.» Cita Montaigne, citando Cícero, que citara Sócrates: «Filosofar, é aprender a morrer». Detém-se para observar a degradação física e mental que acompanha a senilidade, na dolorosa marcha dos humanos até à humilhação final, a inexistência. Recorre amplamente ao «Diário» de Jules Renard: «Não sei se Deus existe, mas seria melhor para a sua reputação que não existisse.» (…) «Talvez o facto de que Deus é incompreensível seja o argumento mais sólido em favor da sua existência.» (…) «A palavra mais verdadeira, mais exacta, mais cheia de sentido é a palavra ‘nada’.»

Interroga-se: «Que se passará quando o cristianismo se somar à lista das religiões mortas e se ensinar nas universidades como uma parte do programa de estudos sobre o folclore; quando a blasfémia não for legal ou ilegal, mas simplesmente impossível?» Que acontecerá quando «as igrejas caírem completamente em desuso»? «Teremos de «manter umas poucas catedrais cronicamente expostas», «teremos de evitá-las como lugares infaustos»? (Philip Larkin). A divisão mais importante não será tanto a que existe entre religiosos e irreligiosos, quanto a que separa os que temem a morte dos que não a temem? Para o agnóstico, as perguntas sem resposta não têm fim. E nada obsta a que até duvide da razão de ser da sua dúvida.

Ao indagar de Deus e da imortalidade, o agnóstico está também, e sempre, a indagar da sua identidade, ou seja, da sua memória. «És o que fizeste; o que fizeste continua a viver na tua memória; o que recordas define o que és; quando esqueces a tua vida deixas de ser, mesmo antes da tua morte.» A perda da memória – como no caso da doença de Alzheimer – considera-a Julian Barnes «um exemplo aterrador do que Lawrence Durrell, num poema, chamou ‘a lenta ignomínia da mente’: a sua queda em desgraça.»

Arthur Koestler, pouco antes de se suicidar, expressou por escrito «tímidas esperanças numa vida despersonalizada no mais além». Mas, comenta Julian Barnes, «eu gostaria que a vida depois da morte, se há alguma, fosse melhor – de preferência substancialmente melhor – do que a sua antecessora terrenal». E acrescenta que valeria a pena ver «a cólera do ateu ressuscitado». De um Bertrand Russell, por exemplo. Preferiria ele que não houvesse nada depois da morte, demonstrando-se assim que tinha razão, ou optaria por ter uma incrível surpresa e ficar assim destruída a sua reputação profissional? A resposta do filósofo, caso morresse e encontrasse no «Paraíso» o Deus cuja existência sempre negara, é conhecida: «Nesse caso, aproximar-me-ia d’ Ele e dir-lhe-ia: ‘Não nos deste suficientes provas’».

Escreve o autor: «Imagino que morrerei como meu pai, no hospital, a meio da noite. Espero que uma enfermeira ou um médico digam que já ‘marchei’, e que haja alguém comigo no fim, morra ou não num hospital. E recorda umas frases que releu no seu diário de vinte anos antes: «As pessoas dizem da morte: ‘não há nada que temer’. Dizem-no rapidamente, com indiferença. Agora digamo-lo outra vez, devagar, sublinhando: ‘Não há NADA que temer’.» Nem «Paraíso», nem «Inferno». NADA, mesmo?

Julian Barnes, «Nada que temer», Anagrama, 2010, 300 páginas