Alain de Benoist («A Actualidade de Carl Schmitt»)

António Rego Chaves

Alain de Benoist publicou em 1977 «Vu de Droite», obra que na nossa língua apareceu logo três anos depois com o título «Nova Direita, Nova Cultura» (Fernando Ribeiro de Mello/Edições Afrodite) e uma sintomática «nota à edição portuguesa» assinada pelo então jovem «ultra» José Miguel Júdice. O livro representava, verdade seja dita, uma pedrada no charco e surgiu aqui como bóia de salvação para uma extrema-direita à procura de meia dúzia de ideias e gravemente ferida pela «tragédia» do 25 de Abril.

Em 2002, vinte e cinco anos depois da «aparição» de «Vu de Droite», num prefácio à nova edição da obra, Alain Benoist reconhecia ter sido «injusto para com autores como Herbert Marcuse, Ivan Illich ou Edgar Morin», ao mesmo tempo que lamentava já não haver em França «homens de alto nível» como Thierry Maulnier, Jules Monnerot, Bertrand de Jouvenel, Raymond Aron, Pierre Gaxotte, Raymond Abellio e outros que mencionava – claro está, bem de direita. A nostalgia explicava-se por não ser evidente que então (como hoje) abundassem «homens de alto nível» no Hexágono.

Talvez por isso, Alain de Benoist fez a apologia em 2007 do pensamento do jurista alemão Carl Schmitt (1888-1985) – que, por oportunismo ou por convicção, teve pesadas responsabilidades, e não apenas intelectuais, na barbárie nazi – expondo e apoiando as suas teses nos quatro ensaios que compõem este volume: «Da ‘Guerra Regular’ ao Retorno da ‘Guerra Justa’», «Do Guerrilheiro ao Terrorista ‘Global’», «Do ‘Caso de Urgência’ ao Estado de Excepção Permanente» e «Da Dualidade Terra/Mar ao Novo Nomos da Terra». O primeiro texto volta a ganhar agora uma inesperada actualidade, com a intervenção militar ocidental na Líbia de Kadhafi.

A perenidade de algumas teorias de Carl Schmitt amplificou-se em 2001 após os atentados do 11 de Setembro: e o mais curioso foi que à «guerra justa» muçulmana, desencadeada por «fanáticos» em nome de Deus, os EUA ripostaram com a «guerra justa» conduzida por «fanáticos» em nome do humanitarismo que Washington define e quer impor ao resto do mundo.

Segundo o jurista nazi, num ensaio datado de1938 – em vésperas do início do último conflito bélico à escala mundial – sobre «a viragem em direcção ao conceito discriminatório de guerra», a era da «guerra justa» moderna iniciou-se com o Tratado de Versalhes e com a vontade expressa pelas potências aliadas de julgar o imperador Guilherme II sob a acusação de «ofensa suprema à moral internacional e à santidade dos tratados». Sintetiza Norbert Campagna: «Schmitt considera que as guerras deixaram de ser, aparentemente, lutas entre adversários que se reconhecem os mesmos direitos e o mesmo estatuto, tendendo cada vez mais a tornar-se acções policiais, opondo os polícias da ordem internacional ao Estado julgado agressor. A guerra torna-se assim numa espécie de luta entre as forças do bem e as forças do mal, entre aqueles que se arrogam o direito de julgar e aqueles que devem ser postos no banco dos réus.»

Assimilado o inimigo a um delinquente, a um criminoso de delito comum que é necessário castigar, as consequências são significativas para a ordem jurídica: «Tal leva, escreve Jean-François Kervégan, a transformar o direito internacional em anexo do direito penal, e a guerra em acção de polícia destinada a punir o culpado.» Comenta o autor: «Sendo tradicionalmente a repressão dos crimes e delitos da alçada das forças policiais, o poder militar toma então, pouco a pouco, o carácter de uma força policial.»

A guerra que se pretende levar a cabo em nome da «humanidade», da «liberdade», do «direito» seria, pois, um confronto mortífero entre o «Bem» (absoluto) e o «Mal» (absoluto): o inimigo deixa de ser considerado um dos humanos e passa à categoria de «inimigo do género humano». Daí que as guerras «humanitárias» tendam a transformar-se em guerras de extermínio: «o ideal da América é a esperança da Humanidade» – proclamava George W. Bush em Setembro de 2002, um ano depois dos atentados contra as Twin Towers. Certo é que, como salienta Alain de Benoist, «a guerra levada a cabo contra o Kosovo em nome dos ‘direitos do homem’ traduziu-se por uma violação sistemática dos direitos dos sérvios, juntamente com um bom número de ‘danos colaterais’. A guerra conduzida contra o Iraque em nome da ‘liberdade’ saldou-se por aquilo que o general Tommy Franks qualificou como um ‘catastrophic success’».

O termo «catastrófico», neste contexto, nada tem de retórico: «A luta em nome do Bem autoriza, não somente a ingerência nos assuntos internos de um Estado soberano (em nome da humanidade, da liberdade, da democracia ou dos direitos do homem), mas também a restrição das liberdades, a abertura de campos que permitam o internamento de prisioneiros sem nenhum estatuto jurídico, o bombardeamento de populações civis, a destruição de infra-estruturas industriais, o recurso à tortura, o uso do napalm ou do fósforo branco, de projécteis de urânio empobrecido, de bombas de fragmentação, de minas anti-pessoal, etc.»

Bin Laden apelou para a «jihad» contra o «grande Satã», George W. Bush para a «cruzada» contra o «eixo do Mal». Como salientou Jacques Derrida, estávamos perante «duas teologias políticas». Explicitou Bruno Étienne: «A jihad opõe-se à cruzada, o Bem ao Mal, Alá ao grande Satã, a ‘fatwah’ afegã à ‘fatwah’ texana; em suma, confrontamo-nos com uma luta fratricida opondo Deus a Deus.» Um fundamentalismo islâmico contra um fundamentalismo neoconservador? No Afeganistão e no Iraque, sem dúvida. Mas não – ainda não? – na Líbia. Mas não – também ainda não? – em Marrocos, na Jordânia, na Síria, no Iémen ou no Bahrein, poupados pelos «polícias» que não bombardearam nem proscreveram os seus dirigentes (todos eles déspotas, «primos irmãos» de Kadhafi) e preferiram escolher outro alvo da ira «humanista», só para que servisse de exemplo…

Alain de Benoist, «A Actualidade de Carl Schmitt», Antagonista, 2009, 155 páginas