A «guerra» de D. Afonso II

António Rego Chaves

Esclarece Luís Homem de Freitas, no prefácio do seu trabalho, que a personagem de D. Afonso II (1185-1223) sempre o intrigou: talvez porque da instrução primária pouco mais fixou do que ter o monarca sido responsável pela reconquista de Alcácer do Sal, talvez porque Luís de Camões não lhe consagrou mais do que uma estância d’ «Os Lusíadas», talvez porque alguém conhecido como «O Gordo» ou «O Gafo» (de gafa, ou seja, lepra) estaria decerto longe de se lhe poder impor facilmente como um paradigmático herói nacional. Acresce que o neto de D. Afonso Henriques, ao contrário de seu aguerrido avô, sempre primou pela ausência nas importantes batalhas que o povo foi obrigado a travar, fosse em Alcácer do Sal, fosse em Navas de Tolosa. Estudados Alexandre Herculano, Ângelo Ribeiro, José Mattoso, Borges Coelho e outros eminentes medievalistas, revela-nos o resultado do seu esforço, segundo afirma – com rara e louvável honestidade intelectual – apenas «uma compilação de dados investigados por outros mas, de maneira nenhuma, uma investigação». Valeu a pena? Deixê-mo-lo responder: «Se, ao terminar este trabalho, forçosamente incompleto, esclareci de algum modo a minha curiosidade sobre este monarca tão desconhecido da generalidade dos portugueses, dei satisfação à principal motivação que me levou a escrevê-lo. Se, além disso, ajudei o leitor a obter mais alguma informação adicional, então essa motivação não só foi satisfeita como também ultrapassada.»

Veríssimo Serrão é muito claro, referindo-se ao «Rei Legislador»: «Durou apenas doze anos o terceiro reinado, que teve a marcá-lo factos relevantes da administração pública. Não foi um governo sem história, como por vezes se defende, pois nele se exerceu uma política de fortalecimento do poder que veio, em grande parte, a servir de modelo a D. Afonso III e a D. Dinis.» Aliás, já Alexandre Herculano fizera notar, como releva Luís Homem de Freitas, que «quase sem excepção as suas leis tendem a fortificar o poder real». Mais ainda, que «Afonso [II] teve dois dotes eminentes, a economia e a firmeza governativa, teve-os até em excesso; mas [que] esses dotes estavam longe de bastar à necessidade dos tempos, e os sucessos posteriores provaram que os esforços do príncipe para tornar o trono mais sólido e independente surtiram bem pouco efeito». Maria Antonieta Soares de Azevedo, escreve, por seu turno, que «ao Reino, cujo alargamento tinha sido a preocupação dominante dos seus antecessores, quis D. Afonso II dar uma orgânica que reflectiu a sua concepção moderna da função do Estado e do rei e da unidade nacional», fazendo notar que «esta orientação política se traduziu nas Cortes de Coimbra de 1211, donde parece ter saído a primeira colectânea de leis gerais que mostram em Portugal, muito mais cedo do que nos outros países, a acção centralizadora do rei na oposição aos abusos das classes privilegiadas». José Mattoso complementará esta asserção: «A doença [lepra] não impediu Afonso II de iniciar uma centralização estatal surpreendentemente inovadora, persistente e vigorosa. De tal modo inovadora que constitui um dos mais precoces ensaios de supremacia do Estado que se conhecem na Europa feudal e que em alguns pontos lembra a acção de Frederico II.»

Incapacitado para as armas pela doença de que padecia (no dizer cruel de Herculano, «afastava-se à medida que o estrépito das armas crescia e aproximava-se ao passo que esse importuno ruído diminuía»), Afonso II concentrará todas as energias na «guerra» contra o alto clero e a nobreza, que incluía suas irmãs, às quais «o pai tinha doado metade do reino e que ele queria reaver para a Coroa». Movendo-se com inteligência entre partidários do centralismo e adeptos da partilha do reino e da concessão de direitos senhoriais, o monarca deu início às Confirmações e Inquirições, que poriam claramente em xeque tanto o clero como a nobreza. Apoiando-se primeiro na Igreja para combater as pretensões das irmãs, enfrentará depois poderosas personalidades e instituições eclesiásticas, nem sequer recuando perante o próprio Papa.

Nada o fará, com efeito, demover dos seus intentos, nem mesmo as sucessivas excomunhões de que foi alvo. Lembra o autor ter o monarca ordenado que fossem averiguadas «a natureza e legalidade das diversas propriedades, direitos senhoriais e padroados das igrejas e mosteiros» e que, «freguesia a freguesia, iam sendo registados e anotados os cadastros daquilo que eram reguengos ([terras] pertencentes à Coroa) e outros bens do Estado e do património real, que tinham sido ilegalmente desviados da fazenda pública». Sublinhando que «o facto de o início das Inquirições ter tido lugar Entre-Douro-e-Minho não foi casual», anota que «em toda a região além-Douro os roubos e desvios de propriedade régia eram muito frequentes, em virtude dos avanços dos senhorios eclesiásticos, das Ordens militares ou dos fidalgos senhores da terra». E acrescenta: «Não foi de estranhar que as classes privilegiadas reagissem de modo crescente. O fosso cavado entre realeza e nobres ou entre realeza e clero ia-se aprofundando gradualmente.» (…) «Apenas D. Diniz tentaria dar mais um passo no processo de centralização política, o que conduziria o país à guerra civil em 1319.»

O rei morrerá excomungado. Degrada-se então a situação política e militar e instaura-se a instabilidade governativa, até que o «partido» senhorial toma conta do Poder, após a guerra civil e o exílio em Toledo de D. Sancho II. Este demonstrara ser, como guerreiro, digno continuador de D. Afonso Henriques, mas revelara-se, ao contrário de seu pai, inábil administrador do Reino. D. Afonso III, irmão de D. Sancho II, que lhe sucedeu por obra e graça de Inocêncio IV, não desistirá, contudo, de continuar a régia «cruzada» centralizadora, desencadeando forte contestação por parte do clero, que logo apelou para Roma. Mas, desta vez, nem foi necessário o Papa depor o monarca, como fizera com D. Sancho II: a morte surpreenderia «O Bolonhês» no leito, em 1279, depois de o terem feito jurar submeter-se à então quase omnipotente Santa Sé…

Luís Homem de Freitas, «D. Afonso II», Prefácio, 2007, 134 páginas