O indignado humor de Swift («Uma Proposta Modesta»)

António Rego Chaves

Caiu sobre Jonathan Swift (1667-1745) a maldição decorrente de o mais célebre dos seus textos, «As Viagens de Gulliver», ser por hábito oferecido a crianças, aliás em edições «expurgadas», quando elas estão longe de o poder entender. Assim sendo, uma vez atingida a idade adulta, fogem de Lilliput como fogem d’ «Os Lusíadas» adultos que na adolescência foram obrigados a conhecê-los, numa altura em que valores porventura menos altos, mas decerto bem mais próximos dos seus interesses, os reclamavam.

Do meu vetusto exemplar de «Gulliver», manuseado por sucessivas gerações, fazem parte as viagens a Lilliput, Brobdingnac e Lapucia, aos Balnibarbos, a Glubbdubdrib, a Luggnagg e ao país dos Huyhnhnms, de onde o narrador seria expulso. É então que encontra uns portugueses que o prendem e o conduzem a Lisboa, onde chega a 5 de Novembro de 1715 (reinavam D. João V e a Inquisição) voltando semanas depois a Inglaterra.

Julgo que poucos leitores não adultos terão entendido a lição das obras de Swift, ou seja, o seu carácter eminentemente subversivo. Na verdade, a sua escrita assume não poucas vezes foros de panfleto revolucionário, pois tudo põe em causa, a ciência, a arte e, sobretudo, a iniquidade dos homens. Por alguma razão o grande misantropo mandou gravar no seu túmulo, em latim, uma frase que ainda hoje talvez em alguns provoque calafrios: «Partiu para onde a indignação cruel não poderá nunca mais dilacerar o seu coração».

Jonathan Swift advogou com coragem os interesses do seu país, a Irlanda, combatendo as medidas mercantilistas de Londres e fazendo publicar, em 1720, «A Proposal for the Universal Use of Irish Manufactures» e, quatro anos depois, «The Drapier’s Letters», texto onde, fazendo-se passar por um respeitável comerciante de Dublin, atacava sem contemplações a política inglesa. Tratava-se de obras anónimas, mas ninguém, incluindo os governantes, desconhecia quem era o seu autor. Nesta sequência de preocupações surgiria, em 1729, «A Modest Proposal for Preventing the Children of Poor People in Ireland from Becoming a Burden to Their Parents or Country, and for Making them Beneficial to the Publick» (sic, «Publick» na versão original), título que nesta edição se traduz por «Uma Proposta Modesta para prevenir as crianças pobres da Irlanda de serem um fardo para os seus pais ou país e para torná-las benéficas ao público», mas que Aníbal Fernandes, em português escorreito, já traduzira por «Proposta modesta para evitar que os filhos dos pobres da Irlanda sejam um fardo para os seus pais ou o país, tornando-se úteis à comunidade».

Escreveu Angus Ross que «o poder de Swift como escritor nasceu da desesperada indignação que sentia ao ver os homens actuar tão abaixo das suas capacidades de seres dotados de razão e criados à imagem de Deus. A sua fé religiosa era profunda e isto deve ser tomado em conta para travar interpretações demasiado fáceis das suas concepções como um pessimismo niilista. Era pessimista, sim, mas como foram todos os grandes moralistas, quando considerava que o homem esbanja a sua razão para aumentar as corrupções naturais e adquirir outras novas que a Natureza não lhe deu».

Na entrada «humour» (sic), a insubstituível «Enciclopédia» de Diderot e d’Alembert fez justiça a Jonathan Swift, ainda que considere ser o humor mais característico do génio ligeiro do «François» do que das disposições de espírito dos «Anglois». E, um pouco adiante, em «liberté de penser», o Abade Mallet, doutor em Teologia pela Universidade de Paris, também não esqueceu Swift, mas desta vez para pôr em xeque, tal como o irlandês no segundo texto inserido neste volume (com o título «Um Argumento para provar que a Abolição do Cristianismo na Inglaterra pode, como as coisas estão agora, trazer alguns Inconvenientes e talvez não produzir os muitos bons efeitos propostos»), os que atacavam a religião só porque essa seria uma forma de, na época, se tornarem logo conhecidos e, mesmo, célebres.

André Breton, no prefácio da sua «Antologia do Humor Negro», evocou a psicanálise, escrevendo: «Seria tempo, dizia Freud, de nos familiarizarmos com certas características do humor. O humor tem não apenas algo de libertador, análogo nisso ao espirituoso e ao cómico, mas ainda algo de sublime e elevado, traços que não se encontram nestas duas ordens de aquisição do prazer por uma actividade intelectual.» (…) «É sabido que no fim da análise que fez do humor [Freud] declara ver neste um modo de pensamento tendente a poupar o dispêndio necessitado pela dor.»

«Revolta absoluta da adolescência e revolta interior da idade adulta», nas palavras de Léon Pierre-Quint, o humor negro, ainda para André Breton, «é limitado por demasiadas coisas, tais como a estupidez, a ironia céptica, o gracejo sem gravidade (a enumeração seria longa), mas é por excelência o inimigo mortal do sentimentalismo (…) e de uma certa fantasia a curto prazo que demasiadas vezes se apresenta como sendo a poesia».

Para o poeta surrealista, Swift foi «o verdadeiro iniciador» do humor negro, por ter sido o primeiro que «provoca o riso, mas sem nele participar». Observou: «É precisamente a esse preço que o humor, no sentido em que o entendemos, pode exteriorizar o elemento sublime que, segundo Freud, lhe é inerente, e transcender as formas do cómico. Ainda a esse título, Swift pode, de pleno direito, passar pelo inventor do gracejo feroz e fúnebre.»

Sufocai o primeiro choque, quando vos derdes conta que esse irlandês que tanto amou a Irlanda e recusou a servidão perante a Inglaterra alvitrou que a solução para o flagelo da fome e para outros terríveis males vividos no seu país estaria em comer os bebés pobres de um ano. É a mais pura e a mais extrema indignação perante a aviltante pobreza dos seus compatriotas que o fere e lhe aguça a imaginação; e a sua pretensa «desumanidade», nos antípodas da pieguice, não é senão a máscara de um coração que sangra.

Jonathan Swift, «Uma Proposta Modesta»/«Um Argumento contra a Abolição do Cristianismo», Alfabeto, 2011, 73 páginas