Viena de Áustria, há cem anos

António Rego Chaves

A Viena de fins do século XIX e princípios do século XX continua a fazer muitos sonhar. Basta evocar nomes como os de Hermann Broch (1886-1951, «Os Sonâmbulos»), Sigmund Freud (1856-1939, «A Interpretação dos Sonhos»), Hugo von Hofmannsthal (1874-1929, «A Carta de Lord Chandos»), Karl Kraus (1874-1936, «Os Últimos Dias da Humanidade»), Robert Musil (1880-1942, «O Homem sem Qualidades»), Arthur Schnitzler (1862-1931, «Der Weg ins Freie» no original alemão, «O Caminho para a Liberdade» na tradução brasileira, «Vienne au crépuscule» na versão francesa), Otto Weininger (1880-1903, «Sexo e Carácter»), Ludwig Wittgenstein (1889-1951, «Tratado Lógico-Filosófico») ou Stefan Zweig (1881-1942, «O Mundo de Ontem») para entendermos quanto a cultura europeia ficou a dever ao Império Austro-Húngaro (1867-1918).

Um império dualista, decerto, o dos Habsburgo (recorde-se que Praga jamais seria convidada a participar na governação) dirigido sobretudo por Viena e também, mas em plano inferior, por Budapeste, «cujos mistérios eram pelo menos tão difíceis de desvendar como os da [Santíssima] Trindade» (Robert Musil). Conhecida a realidade geográfica, tudo ou quase tudo se deixava explicar: «A Áustria-Hungria compreende oficialmente cinquenta e seis países diferentes, reinos, arquiducados e ducados, condados, Marcas, principados, cidades e senhorios, tendo por elo principal a pessoa do seu senhor. É um caos político, complicado por fantasias administrativas. O relevo geral do solo, e sobretudo a forma do grande vale do Danúbio, ajudam a explicar o nascimento e os desenvolvimentos graduais desta bizarra aglomeração de Estados» (Élisée Reclus, 1878).

Rüdiger Wischenbart, austríaco: «Tal como Viena engoliu os checos e os transformou em ‘alemães’ apenas no espaço de uma geração (metade dos membros do governo federal austríaco tem hoje [1996] nomes checos), em Budapeste a máquina da industrialização em plena expansão transformou os eslovacos em húngaros. Os nacionalistas eslovacos não puderam senão deplorar esta pesada perda causada pelo êxodo maciço para Budapeste, que descrevem em termos de canibalismo quando fazem as contas em 1943: ‘Nos anos de 1880 a 1910, Budapeste devorou, segundo a nossa estimativa, pelo menos 70 mil a 80 mil eslovacos.’ Queriam dizer com isso que os eslovacos tinham sido culturalmente assimilados, magiarizados.»

«Budapeste olha Berlim e Paris evitando cuidadosamente deixar-se atrair pelo brilho da vida cultural vienense. Viena interroga os fundamentos da civilização europeia, enquanto Budapeste, em plena ascensão, abraça com fervor a causa nacional inspirando-se no folclore e na arte popular, ao mesmo tempo que procura conjugar progressivamente, nos últimos anos do Império, a identidade cultural magiar e a adesão à modernidade europeia» (Dieter Hornig, austríaco). A rivalidade entre as duas capitais era inegável mas, embora a águia tivesse duas cabeças e um corpo comum, Viena foi de facto a verdadeira «capital do espírito» na Europa Central de há cem anos.

Endre Kiss, húngaro: «Viena e Budapeste figurarão sempre no horizonte cultural da Europa como capitais da modernidade. Viena fica como a capital da sua segunda vaga, da substancialização do destino, da concepção metafísica da existência, da mimese parcial. Budapeste fica como a capital de uma miscelânea específica de Nietzsche e de política democrática, de Baudelaire e de uma luta para recuperar de atrasos históricos. Em Viena, a política, na medida em que era tomada em conta, foi estetizada, ao passo que em Budapeste a arte foi politizada. Viena transformou-se na capital ‘moderna’ dos territórios novos e inexplorados do espírito moderno, e Budapeste na capital ‘moderna’ de um intelectualismo heróico.»

Pál Harmat, também húngaro: «As teorias de Freud são indissociáveis da modernidade vienense e constituem uma resposta à crise de identidade da viragem do século. Encontram um eco em Budapeste, onde Ferenczi encarna a escola psicanalítica húngara [Melanie Klein, Geza Roheim, Michael Balint], que se distingue por uma orientação profundamente social.» (…) «A crítica do comportamento sexual não é mais do que um elemento do juízo de Ferenczi sobre a sociedade. O outro tema bem delimitado diz respeito às relações de dependência. Criticava em particular as relações simbólicas pai/filho exageradamente autoritárias (as relações entre o Estado e o súbdito, por exemplo, ou entre professor e aluno, entre a Igreja e os fieis…). Condenava assim de viés a pedagogia, a maneira como era aplicada a justiça, assim como a Igreja [Católica] da sua época.»

Jacques Le Rider, reputado especialista da «Mitteleuropa», numa obra de grande fôlego que porventura só terá o defeito de ter sido impressa em letra miudinha, «Modernité viennoise et crises de l’identité»: «Três autores serviram de guias e de referências durante todo este trabalho: Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e Robert Musil. A crítica da decadência contemporânea e o apelo à regeneração da humanidade moderna, em Nietzsche, marcaram profundamente todos os criadores e os intelectuais vienenses de que nos ocuparemos aqui. Logo após as suas ‘Considerações Intempestivas’, a mensagem de Nietzsche, apenas esboçada, encontrava em Viena os seus primeiros discípulos. Uns, como Freud, recusavam-na, mas conservando a marca indelével desse encontro intelectual; para a maioria dos modernos vienenses, o nietzschianismo representava o ponto de partida comum dos seus itinerários individuais.»

Poucos terão criticado Viena e a modernidade como Karl Kraus, sobretudo na revista «Die Fackel» («O Archote»), que fundou e dirigiu, revoltado com a subserviência aos vários poderes do jornalismo praticado na capital austríaca. Se o leitor assim o desejar, veremos em seguida como, desde 1899 até à sua morte, em 1936, este incansável desmancha-prazeres da ordem estabelecida utilizou a Imprensa para nos escalpelizar a sua época.

Vários Autores, «Vienne-Budapest, 1867-1918. Deux âges d’or, deux visions, un Empire», Éditions Autrement, 1996/2008, 261 páginas