George Orwell ou as boas intenções

António Rego Chaves

Salienta o tradutor desta biografia, Fernando Gonçalves, em nota de rodapé, que George Orwell (1903-1950) não foi opositor ao comunismo em sentido lato, mas ao comunismo na sua versão estalinista. E adverte: «Assim, para melhor fazermos justiça ao seu pensamento, onde se lê ‘comunismo’, ‘anticomunismo’ ou ‘oposição ao comunismo’, por exemplo, devemos ler ‘estalinismo’, ‘antiestalinismo’ ou ‘oposição ao estalinismo’.» O reparo é tanto mais pertinente quanto a terminologia apontada se revela fulcral na interpretação das concepções do autor de «A Quinta dos Animais» e de «Mil Novecentos e Oitenta e Quatro».

O historiador John Newsinger, no prefácio que redigiu para a edição portuguesa deste seu trabalho, lembra que, «para grande parte da esquerda na Grã-Bretanha, e ainda mais no continente, a União Soviética era socialista e o socialismo era a União Soviética», salientando que «esta crença deu grande utilidade aos livros [‘A Quinta dos Animais’ e ‘1984’] durante a Guerra Fria». Valha a verdade que o aproveitamento das referidas obras de ficção pela direita «civilizada» não é de estranhar, dado que Orwell, a partir da dura experiência da Guerra de Espanha, levou o antiestalinismo a extremos que induziram muitos dos seus leitores à confusão entre estalinismo e comunismo. E o romancista, que a si próprio se considerava «socialista revolucionário», passou por ser anticomunista militante.

A questão-chave na evolução política do autor de «1984» foi, pois, tanto quanto nos parece possível ajuizar, o papel desempenhado pela URSS na Guerra de Espanha, nomeadamente na Catalunha, onde, segundo testemunhou, a revolução foi «travada» pelos comunistas ligados a Moscovo – embora não pudesse ignorar o decisivo papel desempenhado na derrota da esquerda pela Alemanha nazi e pela Itália fascista. Daí em diante, o comunista trotskista Orwell parece escolher «os russos» como o alvo principal das suas críticas, porventura esquecendo que assim vai fazer «o jogo do inimigo», ou seja, o das mais reaccionárias forças ocidentais.

Explica-se o drama pessoal do homem que escreveu «Homenagem à Catalunha» – depois de arriscar a vida em Espanha para lutar pela revolução, mais do que pela república – perante o esmagamento de trotskistas, anarquistas e sindicalistas pelas forças catalãs conservadoras, com a activa cumplicidade dos pró-soviéticos. Mas dificilmente se justificará que tal drama o conduzisse à perda da lucidez política que lhe permitiria prever os efeitos ideológicos devastadores que o seu antiestalinismo teria para a causa da revolução socialista. Vinda de um trotskista, a falha era de monta – o próprio Trotsky foi dos primeiros a denunciar a «tirania» de Estaline, mas a direita, ao contrário do que fez com Orwell, nunca o poderia usar como arma de arremesso contra as expectativas numa sociedade comunista.

A tese de John Newsinger assenta na ideia segundo a qual o seu biografado era um homem de esquerda e que foi nessa qualidade que se opôs ao estalinismo. É, porém, por vezes muito penoso acompanhar o historiador nesta sua interpretação, sabendo-se como se sabe que o «socialista revolucionário» que regressou à Grã-Bretanha depois de ter feito a Guerra de Espanha daria sobejas provas de apoio à política reformista do Partido Trabalhista. Sem dúvida mantinha preocupações, aliás bem expressas na sua obra ensaística, que a todo o momento lhe reavivavam a necessidade de lutar pela justiça social – que considerava inexistente no seu país, mesmo depois do fim da Segunda Guerra Mundial. E isto apesar de o «Labour» do primeiro-ministro Clement Attlee, após a vitória eleitoral de 1945, ter conseguido levar a cabo uma política de reformas que teria significativas consequências na vida quotidiana do proletariado (basta lembrar o pleno emprego, as pensões de velhice, o leite gratuito para as crianças das escolas).

Mas o fim da Segunda Guerra Mundial não significou apenas uma mudança que a esquerda britânica teria de enfrentar em termos de política interna. Depois dos sobressaltos que se seguiram ao Pacto Germano-Soviético ou à invasão da URRS pelas tropas alemãs, tornava-se necessário tomar partido no contexto da Guerra Fria. Entre as duas superpotências havia que escolher, pois não existiu terceira via para aqueles que, como Orwell, viveram os anos 45/50. Se se tornou possível sonhar, no plano interno, com algo de intermédio entre simples reformismo e revolução (o famoso mas nunca visto «socialismo democrático»), tal não seria concebível no campo da política internacional. A recusa de alguma esquerda – de uma forma geral a ligada aos partidos comunistas europeus – a criticar a URRS permitira já que «A Quinta dos Animais» e «1984» se voltassem contra ela; mas daí até que a restante esquerda não-reformista se decidisse por apoiar os EUA contra a URSS, em plena Guerra Fria, ia um abismo dificilmente transponível por alguém que a si próprio se assumisse como um «socialista revolucionário». Orwell daria esse gigantesco e temerário passo – optando pelo país de Truman.

Sustenta John Newsinger que o seu biografado foi até à morte «firme defensor da sociedade sem classes, democrática e igualitária, onde os meios de produção eram propriedade pública e onde todos os grupos privilegiados, fossem eles os ricos ou uma classe dirigente burocrática, haviam sido extintos». Não há que duvidar de quem acompanhou tão de perto o acidentado percurso físico e intelectual do autor de «Homenagem à Catalunha». Mas as boas intenções de Orwell, por mais genuínas que fossem, não devem deixar obscurecer dois factos fundamentais: as suas obras mais lidas, «A Quinta dos Animais» e «1984», estão muito longe de poder ser interpretadas como críticas trotskistas a sociedades estalinistas e constituem, desde há muito, com razão ou sem ela, um «trunfo» utilizado pela direita. Eis quanto basta para recusarmos lucidez às suas ambiguidades políticas.

John Newsinger, «George Orwell - Uma Biografia Política», Antígona, 2010, 284 páginas