José Mattoso/«História da Vida Privada em Portugal- A Idade Média»

Uma memória de privilegiados

António Rego Chaves

Salienta José Mattoso na apresentação geral desta obra em quatro volumes, consagrada à «História da Vida Privada em Portugal» e que aborda, além da Idade Média, a Idade Moderna, a Idade Contemporânea e «Os Nossos Dias», que a História política, a História das estruturas sociais e a História da vida privada se completam, «abrindo caminho à História total». Adverte, no entanto, já a fechar este tomo, Mário Jorge Barroca: «Falar da memória é, para a Idade Média, quase sempre falar da memória escrita e, por conseguinte, da preservação de um certo tipo de memória: a que respeita aos estratos sociais privilegiados (que tinham acesso à escrita) e aos temas que, naturalmente, esses estratos, enquanto produtores dos registos, entendiam ser significativos.»

De facto, «a memória dos que não tiveram direito à memória», conclui ainda Mário Jorge Barroca, é «a grande ausente» de qualquer obra que seja consagrada à Idade Média. Reis, nobres e clérigos puderam dispor da «arma» da escrita; mas, quanto ao povo analfabeto – o que não significa «inculto» – esse estava longe de poder superar a simples oralidade, cujo conteúdo se esfumava, regra geral, ao fim de duas ou três gerações. Temos de contentar-nos, pois, com a memória interessada de uma elite, de uma esmagadora minoria dos portugueses que viveram na Baixa Idade Média, os poderosos. Quanto à «arraia-miúda», essa terá sempre um lugar cativo na História política e na História das estruturas sociais, mas dificilmente se poderá ir muito além das conjecturas no que se refere à sua vida privada.

José Mattoso, na esteira de Georges Duby, afirma que «não se deve confundir a história da vida privada com a da vida quotidiana, nem com a história do individualismo». E acrescenta: «A vida quotidiana é, sem dúvida, o quadro material em que se desenrola a vida privada; ao investigador interessa, pois, tudo o que a condiciona, a protege ou a ameaça. Mas a distinção entre ela e a vida privada não é fácil. A título de exemplo, digamos que se estudaria a casa enquanto espaço doméstico, mas não enquanto espaço de trabalho ou de produção; que interessa o vestuário, mas se deve examinar com mais atenção a roupa interior; que, no caso de se tratar dos transportes e das viagens, o mais significativo são as precauções para preservar a privacidade, particularmente as pessoas que mais dela dependem, isto é, as mulheres em geral e as religiosas em particular.» Resta saber se os nossos «sans-culottes» usavam roupa interior.

Num livro publicado há já quase meio século («A Sociedade Medieval Portuguesa»), Oliveira Marques fez época. Em dez capítulos magistrais (A Mesa, O Traje, A Casa, a Higiene e a Saúde, O Afecto, O Trabalho, A Crença, A Cultura, As Distracções, A Morte) sobre a vida quotidiana dos nossos antepassados, logrou o autor, a uma só voz, «oferecer a um grande público história autêntica, diluindo a aparente contradição entre ciência especializada e interesse divulgador». É na sequência do brilhante trabalho de pioneiro realizado por Oliveira Marques que inserimos este volume da «História da Vida Privada em Portugal» consagrado à Idade Média.

Fazem notar José Mattoso e Bernardo Vasconcelos e Sousa, coordenador da obra, despertando-nos a expectativa para os volumes que se seguem, «a escassez das fontes medievais verdadeiramente apropriadas para o estudo da vida privada, em contraste com a abundância das que se podem utilizar para as épocas moderna e contemporânea». E acrescentam: «Como é evidente, a escrita medieval é inicialmente monopólio da Igreja. Só a partir do século XII começa a ser usada também pelos príncipes e senhores, mantendo-se, no entanto, até finais do século XV, o controle clerical sobre toda a escrita, mesmo a que dimanava do poder político.» Ora o cronista Fernão Lopes, recordemos, escreveu na primeira metade do século XV…

Como ensinou Borges Coelho num texto memorável: «A história falava-nos de cima (e ainda fala), mas Fernão Lopes abriu janelas para os de baixo. Duarte, o rei-filósofo, encarregou-o de ‘pôr em crónica as estórias dos reis’, e ‘isso mesmo os grandes feitos e altos do mui virtuoso e de grandes virtudes el-Rei meu senhor e padre’. Ora, ao narrar esses feitos de João, mestre de Avis, matador do Andeiro, Messias da arraia-miúda, Fernão Lopes fez entrar de roldão a cidade de Lisboa, os mesteirais, os ventres ao sol, os honrados, aqueles que não eram dos maiores nem dos mais pequenos, as mulheres, o cidadão Álvaro Pais, o Gil Fernandes de Elvas, libertado pela malta das vinhas, o ‘bom’ do Rui Pereira, o guerreiro novo Nuno Álvares Pereira…» E por aí fora, sempre atento ao «povão», ainda que de tanto não tivesse sido incumbido. É verdade que nada ficámos a saber acerca da cor das cuecas da arraia-miúda, mas, graças ao autor da «Crónica de D. João I», sabemos o que ela fez na Revolução de 1383.

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Indicam-se o sumário e os autores deste volume, que aborda três grandes temáticas, Espaços e Lugares, O Corpo, A Alma. ESPAÇOS E LUGARES: O espaço urbano e o espaço rural (Adelaide Pereira Millán da Costa e Iria Gonçalves); A casa (Sílvio Conde); O paço (José Custódio Vieira da Silva); A família: o léxico (Leontina Ventura); A família. Estruturas de parentesco e casamento (Bernardo Vasconcelos e Sousa e José Augusto de Sotto Mayor Pizarro); A festa – a convivialidade (Maria Helena da Cruz Coelho); Marginalidade e marginais (Luís Miguel Duarte). O CORPO: O nome (Iria Gonçalves); A alimentação (Iria Gonçalves); A criança (Ana Rodrigues Oliveira); A mulher (Ana Rodrigues Oliveira e António Resende de Oliveira); O corpo, a saúde e a doença (José Mattoso). A ALMA: Sagrado, devoções e religiosidade (Maria de Lurdes Rosa); A morte e o Além (Maria de Lurdes Rosa); Memórias (Mário Jorge Barroca).

José Mattoso (direcção), «História da Vida Privada em Portugal – A Idade Média», Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2010, 480 páginas