Flanar em Paris (Edmund White)

António Rego Chaves

Romancista, contista e autor de uma magistral biografia de Jean Genet, o norte-americano Edmund White, que residiu em Paris entre 1983 e 1998, publicou um roteiro muito pessoal da capital francesa, que afirma ser «uma grande cidade, no sentido em que Londres e Nova Iorque são grandes cidades e Roma é um aldeia, Los Angeles uma colecção de aldeias e Zurique província».

Para além da «boutade», no mínimo acintosa para Roma, o atrevimento do autor-«flâneur» não é pequeno, apesar de haver quem o considere «o maior escritor americano actual» e, simultaneamente, «o mais parisiense dos escritores americanos». É que, de Louis-Sébastien Mercier («Tableau de Paris») a nomes da grandeza de Balzac, Victor Hugo, Nerval, Baudelaire, Proust, Rilke ou Walter Benjamin, não esquecendo André Breton («Nadja», «O Amor Louco»), Aragon («Le Paysan de Paris») e Hemingway («Paris é uma Festa») muitos foram os que abordaram o tema, decerto tão fascinante quanto inesgotável.

Edmund White ajuda-nos a lançar um olhar especialmente atento sobre um «quadrilátero mágico» de oito bairros implantados em torno do Sena e limitado, a oeste, pelo Arco do Triunfo e a Torre Eiffel e, a leste, pela Bastilha e o Panteão. E aconselha-nos: «Podemos começar pelas duas ilhas do rio, a Île de la Cité e a Île de Saint-Louis, e avançar depois pelo boulevard Saint Germain desde a Île de Saint-Louis até ao coração de Saint-Germain-des-Prés, com o seu trio de estabelecimentos famosos – a “brasserie” Lipp e os cafés de Flore e Les Deux Magots.» Pena que, a seguir, já não encontremos a excelente livraria Le Divan, tomada de assalto por Dior, nem uma das poucas lojas de discos da zona, «canibalizada» por Cartier, nem Le Drugstore, esmagado por Armani. Resta-nos a La Hune, aberta até meia-noite, onde podemos ver, folhear e comprar obras para todos os gostos e preços, romance e poesia, filosofia e religião, volumes da Pléiade ou das magníficas colecções de bolso francesas.

«Paris, os Passeios de um Flâneur» é obra sólida, bem documentada, escrita com mão segura não apenas por um bom conhecedor da cidade como por um aplicado estudioso da sua história. No primeiro capítulo, que ocupa cerca de sessenta páginas, o livro faz-nos esperar o que, infelizmente, não continuará a dar-nos nos restantes: a permanente fluidez do texto, o encanto da descoberta dos lugares, o sábio equilíbrio entre a reportagem e a erudição. Mais ainda: fica-se, depois de terminada a leitura, com a noção de que a obra – aliás publicada pela primeira vez no Reino Unido – se destina sobretudo a um público insular anglo-saxónico pouco ou nada informado acerca dos europeus continentais. É no primeiro capítulo que desfilam Sartre, Beauvoir e Camus, Le Corbusier, Giacometti e Picasso, Juliette Greco, Françoise Sagan e Marguerite Yourcenar, o Voltaire do «caso Calas» e o Zola defensor de Dreyfus, o Jean Cocteau que, com uma única frase lida em pleno tribunal, salvou Jean Genet de mais uma sinistra estada na prisão de Fresnes: «Ele é Rimbaud e não se pode condenar Rimbaud.»

Edmund White não esquece o mercado de livros raros e em segunda mão da zona de Vanves, o «marché aux puces» de Clignancourt, a avenue Foch com os seus milionários e as suas «poules de luxe», a famosa mercearia Fauchon da place Madeleine, as lojas de mobiliário da rue Bonaparte, a Académie des Beaux-Arts, a Bibliothéque Mazarine, o Louvre, o Palais Royal, Notre Dame, enfim, um sem-número de espaços e monumentos que fazem com que «Paris, terra da novidade e da distracção, seja a grande cidade do “flâneur” – esse caminhante sem rumo nem objectivo certo que se perde na multidão e que vai para onde quer que o capricho ou a curiosidade dirija os seus passos».

Colette, que o autor considera «o mais talentoso romancista francês da sua época» após a morte de Proust, ocorrida em 1922, ocupa uma dúzia de páginas, bem mais do que dois dos indiscutíveis mestres da «flânerie» – Baudelaire, autor do clássico «Le Peintre de la vie moderne», e Walter Benjamin, responsável pelo crucial «Paris, capitale du XIX siècle» –, o que só pode ser explicado pela grande popularidade de que a criadora de «Chéri» goza no mundo anglófono. Igualmente exagerado, na economia da obra, nos parece o espaço concedido às considerações acerca das passagens por Paris dos norte-americanos Sidney Bechet, Josephine Baker ou Richard Wright, em detrimento de uma Gertrude Stein, um Hemingway ou um Scott Fitzgerald.

Seja como for, vale a pena levar este livrinho consigo, caso o leitor vá a Paris nos próximos tempos. Nele encontrará numerosas pistas que o poderão conduzir, no «quadrilátero mágico» ou fora dele, a uma cidade capaz de lhe conquistar o coração de uma vez para sempre – se é que ainda não teve a felicidade de ser contaminado pela incurável síndroma do «flanador». O início do Outono é, aliás, uma boa ocasião para «flanar» sem grandes incomodidades meteorológicas sob e sobre as folhas douradas dos castanheiros da cidade que foi e é para muitos de nós a única terra prometida sempre ao alcance do nosso desejo – ou seja, um permanente estado de espírito.

Edmund White, «Paris, os Passeios de um Flâneur», ASA Editores, 2004, 255 páginas