O vasto mundo da percepção (Merleau-Ponty)

António Rego Chaves

Cem anos depois do seu nascimento, Merleau-Ponty (1908-1961) surge-nos como um dos maiores pensadores franceses nascidos no início do século XX, a par de Jean-Paul Sartre (1905-1980) ou Henri Lefebvre (1901-1991). O impacte causado pela sua proximidade em relação aos marxistas desviou a atenção de muitos leitores para as obras menos estritamente filosóficas que assinou. Director «oculto» de «Les Temps Modernes», com Sartre, acabaria por entrar em ruptura com este, após a polémica série de artigos intitulada «Os Comunistas e a Paz» (1952-1954), ao publicar «As Aventuras da Dialéctica» (1955). Já antes fizera editar «A Estrutura do Comportamento» (1942), «A Fenomenologia da Percepção» (1945), «Humanismo e Terror» (1947), «Sentido e Sem-Sentido» (1948) e «Elogio da Filosofia» (1953). Depois surgiriam os «Sinais» (1960), alguns escritos póstumos como «O Olho e o Espírito» e «O Visível e o Invisível» (ambos em 1964), «A Prosa do Mundo» (1969) e «Palestras» (2002).

Como sintetizou Antoine Berman, «o pensamento de Merleau-Ponty fundamenta-se simultaneamente numa reflexão de orientação fenomenológica e numa tentativa de integração das ciências do homem – em primeiro lugar a psicologia e a linguística – na filosofia.» (…) «Por meio de uma interrogação dos poetas, dos escritores e – cada vez mais – dos pintores, Merleau-Ponty aprofunda o que chama a procura do ‘Ser bruto’, essa dimensão existencial, quase cósmica, anterior a todo o saber constituído.»

Talvez como ninguém, Sartre, nas «Situações», apresentou-nos esse intelectual a quem se encontrava ligado «por uma mesma cultura e por uma mesma experiência», com quem tão de perto convivera e de quem fora amigo e cúmplice na reflexão – ainda que muitas vezes caminhando em direcção oposta, nomeadamente nos terrenos da fenomenologia ou da política, durante os anos conturbados da Guerra Fria. Deixou escrito: «Ele não tinha a mínima necessidade de companhia para lançar uma nova luz sobre a singularidade da sua época, sobre a sua própria singularidade.» (…) «Não era marxista. Não recusava a ideia, mas sim que ela fosse um dogma. Não admitia que o materialismo histórico fosse a única luz da História nem que essa luz emanasse de uma fonte eterna, subtraída por princípio às vicissitudes do acontecimento. A este intelectualismo da objectividade ele censurava, como ao racionalismo clássico, o facto de olhar o mundo de frente e de esquecer que ele nos envolve.» (…) «Fosse qual fosse a doutrina, ele desconfiava, temendo descobrir nela uma construção do ‘pensamento de sobrevoo’. Relativismo, portanto, mas de precaução; o único absoluto em que acreditava era o do nosso ‘ancoramento’ à vida. No fundo, que censurava ele à teoria marxista da História? Isto, que é importantíssimo, e nada mais: ela não deixava um lugar à contingência.» (…) «Contingência de cada um e de todos, contingência da aventura humana; no seio desta, contingência da aventura marxista.» (…) «Primeiro tinha reflectido sobre a singularidade da sua vida, depois, voltando à sua existência histórica, tinha descoberto que uma e outra são feitas do mesmo tecido.»

Estas «Palestras» constituem uma chave privilegiada para aceder à compreensão do papel desempenhado pelo vasto mundo da percepção na filosofia de Merleau-Ponty. «À sua volta (…) vão-se polarizando outros temas: o significado do corpo, a sua relação com o mundo e com os outros, a comunicação das consciências no mundo, a intersubjectividade como intercorporeidade, o nexo de desejo e palavra, a relação entre razão e linguagem, a efabibilidade (sic) do sensível, o enlace entre o sujeito e o objecto mediante o corpo vivido, a secreta afinidade e complementaridade – em plena diferença – entre ciência e arte na revelação da carne do mundo.» (Artur Morão).

Alguns alertas do autor: «Quando da ciência, da pintura e da filosofia clássicas se passa à ciência, à pintura e à filosofia modernas, assiste-se a uma espécie de despertar do mundo percebido. Reaprendemos a ver o mundo à nossa volta, do qual nos tínhamos afastado devido à convicção de que os nossos sentidos nada de válido nos ensinam e que só o saber rigorosamente objectivo merece ser conservado.» (…) «Porque é que tantos escritores clássicos mostram indiferença para com os animais, as crianças, os loucos, os primitivos? É que estão persuadidos de que existe um homem realizado, destinado a ser ‘senhor e dono’ da natureza, como dizia Descartes, capaz, portanto, por princípio, de penetrar no ser das coisas, de constituir um conhecimento soberano, de decifrar todos os fenómenos, não só os de natureza física, mas ainda os que a história e as sociedades humanas nos mostram, de os explicar pelas suas causas e, finalmente, de encontrar em qualquer acidente do seu corpo a razão das anomalias que mantêm a criança, o primitivo, o louco, o animal afastados da verdade.» (…) «Mas é justamente esta convicção, ou antes, este dogmatismo, que uma ciência e uma reflexão mais amadurecida põem em questão.» O indivíduo considerado «normal», acrescenta o filósofo, «não pode fechar-se em si, deve preocupar-se por compreender anomalias de que nunca está de todo isento. É convidado a examinar-se sem complacência, a redescobrir em si mesmo toda a espécie de fantasmas, de devaneios, de condutas mágicas, de fenómenos obscuros, que permaneçam todo-poderosos na sua vida privada e pública, nas suas relações com os outros homens, que deixam, mesmo, no seu conhecimento da natureza, toda a espécie de lacunas pelas quais se insinua a poesia. O pensamento adulto, normal e civilizado vale mais do que o pensamento infantil, mórbido ou bárbaro, mas com uma condição: que não se tome por pensamento de direito divino, que se meça sempre mais honestamente nas obscuridades e dificuldades da vida humana, que não perca o contacto com as raízes irracionais desta; que, por fim, a razão reconheça que o seu mundo também é inacabado, não pretenda ter ultrapassado o que ela se limitou a mascarar, e não tenha por incontestáveis uma civilização e um conhecimento cuja função mais elevada é, pelo contrário, contestar.»

Maurice Merleau-Ponty, «Palestras», Edições 70, 2003, 79 páginas