Jacinto Baptista/«O Cinco de Outubro»

Outubro sem sonho

António Rego Chaves

Editada numa colecção marcada pelo pensamento da esquerda de «O Filme e o Realismo» (Baptista-Bastos), «A Revolução Francesa» (A. Manfred, historiador soviético) ou «Racionalismo, Consciência Metodológica» (Sottomayor Cardia), esta obra de Jacinto Baptista (que, após o 25 de Abril, em 1975, seria eleito director do «Diário Popular») foi uma exemplar manifestação de consciência cívica, numa época em que não havia cão nem gato «salazarento» ou pretenso «apolítico» que não criticasse a I República.

«O Cinco de Outubro» não é apenas o produto do labor de um historiador: constitui, também, uma bem sucedida tentativa de nos revelar o quotidiano de uma época em que se chocavam indivíduos, mentalidades e classes sociais apostados em fazer sair o País do caos económico, político e moral em que se encontrava após o Ultimato, a ditadura de João Franco e o Regicídio. Com mão de mestre, Jacinto Baptista folheou os jornais diários e outras fontes coevas, confrontou opiniões, releu Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida, Carlos Malheiro Dias. E, corria o ano de 1964, deu à estampa este livro que refundia e ampliava alguns artigos que fizera publicar nesse digno bastião da resistência ao salazarismo que foi a revista «Seara Nova.»

Entendia Fialho que a implantação da República fora, em certo sentido, o remate «da campanha ignóbil contra as classes ricas e conservadoras, e principalmente contra senhoras, que vem sendo feita há anos por jornais de acentuada voga revolucionária». Ramalho, por seu turno, troçava das «damas oficiais que, no fim do primeiro jantar diplomático a que assistiram, beberam, como cálice da amargura oficial, a taça de água morna com uma talhada de limão, que criados insidiosos lhes puseram na frente para lavar os dedos». Isto enquanto Teófilo viajava de eléctrico de casa para o gabinete presidencial e do gabinete presidencial para casa, não como um Bragança, mas como qualquer dos seus mais modestos servidores…

É incontroverso que, como afirma o autor, «após a revolução de 1910, o aparelho legislativo funcionou com outra composição legislativa e outra composição executiva e a arbitragem passou a ser determinada por eleição e não por sucessão hereditária». Mas não é menos verdade que, como logo em 1912 fazia notar o monárquico Carlos Malheiro Dias, «a República não veio modificar estruturalmente o regime político criado pelo liberalismo», pois «as funções e relações mútuas dos poderes do Estado permaneciam semelhantes e a revolução de Outubro nem sequer reduzira a uma as duas câmaras tradicionais». Ou seja, as engrenagens políticas eram as mesmas.

Afirmava Joaquim Madureira que o 5 de Outubro viu «burgueses a encomendar bombas e proletários a manejá-las». Aliás, António José de Almeida chegara a sustentar, em 1908, na Câmara dos Deputados, que «a bomba de dinamite, em revolução e em certos casos, pode ser tão legítima, pelo menos, como as granadas de artilharia, que não são mais do que bombas legais, explosivos ao serviço da ordem». Prodígio dos prodígios, após a queda da monarquia, revolucionários humildes, desprovidos de quaisquer bens, «guardaram os cofres abarrotados de libras» obviamente pertencentes à burguesia. O novo regime, porém, não visava uma aliança de classes: desde logo se mostrou empenhado em deixar incólume a textura das relações económicas e sociais. Dirá a «Canção do pé descalço», poucos anos depois: «Descalço, roto, esfaimado/ Os bancos eu defendi; / Bem cedo me arrependi.» Quirino de Jesus completará este quadro: «a mesma anterior oligarquia plutocrática, mercantil, industrial e agrícola continuava de pé, tendo na sua dependência quase tudo o mais, até às vezes o poder público». Sem ilusões, João Chagas já avisara, em 1909 que, «se é o povo que faz as revoluções, são muitas vezes os seus inimigos que se aproveitam delas».

Longe de se atenuar, pois, a luta de classes renovava-se, uma vez gozada a ilusória «lua-de-mel» entre o povo e a burguesia, e já reconhecidos os direitos à greve e ao «lock-out». Prosseguia, assim, escrevia Joaquim Madureira em 1911, entre «esse povo que quer emancipar-se e essa república que o quer oprimir, a luta social do indivíduo contra o Estado, do salário contra o Capital, a luta de classes, a única e verdadeira luta».

Como lembraria António Sérgio, «o que leva às revoluções (não é de mais repeti-lo ainda) não são as ‘doutrinas subversivas’: é a economia do país». Mas a grande obra da República, se bem que indiscutivelmente notável no plano financeiro até ser interrompida devido à penúria provocada pela Grande Guerra, foi outra, segundo assevera Jacinto Baptista: a legislação produzida e começada a aplicar pelo governo provisório. Salienta o autor: «A despeito dos seus erros, talvez dos seus excessos, essa legislação (e o caminho que se propunha abrir), foi, talvez, a obra maior que a República edificou e legou, e sem a qual – João Chagas o viu com clareza – o 5 de Outubro teria sido, apenas, ‘a conquista do poder político, uma mudança de fórmulas, uma simples substituição de personalidades’.»

Avulta neste contexto a figura de Afonso Costa, cuja biografia política abordaremos em próximo artigo. Para já, eis o seu programa de governo, tal como o expôs ao diário britânico «The Times»: «Desenvolveremos a instrução; asseguraremos a defesa nacional, procurando colocar-nos em condições de verdadeiros e sérios aliados do vosso grande país; desenvolveremos as colónias numa base de governo autónomo; daremos plena autonomia ao poder judicial; criaremos o sufrágio universal e livre; asseguraremos o crédito público; daremos todo o desenvolvimento à economia nacional; estabeleceremos um autêntico equilíbrio orçamental; faremos respeitar todas as liberdades necessárias; expulsaremos frades e freiras, em harmonia com as nossas seculares leis liberais; instituiremos a assistência social; decretaremos a separação da Igreja e do Estado».

Jacinto Baptista, «O Cinco de Outubro», Arcádia, 1964, 340 páginas