Fernando Pessoa («Crónicas da vida que passa»)

Fernando Pessoa despedido

António Rego Chaves

Esta colectânea tem as virtudes de apresentar Fernando Pessoa como cronista no início da Primeira Guerra Mundial e de oferecer uma bem informada introdução, da autoria de Pedro Sepúlveda, aos dezoito pequenos textos que preenchem o volume. Em Abril de 1915, o poeta escreve a um dos seus companheiros na revista modernista «Orpheu», Armando Côrtes-Rodrigues: «Com a minha vida, indisciplinadora de almas, no escritório, acrescida da minha vida jornalística de agora (sou redactor d’uma nova folha que aqui há, ‘O Jornal’ – caí nesta vala temporariamente), mal tenho tempo para as minhas simples cousas da vida intelectual…»

Mas que era «O Jornal»? Segundo Fernando Cabral Martins, um «diário publicado em Lisboa de 4 de Abril a 19 de Maio [de 1915], com a direcção de Boavida Portugal e dedicado em grande parte a defender a ditadura de Pimenta de Castro». Narra ainda o mesmo investigador: «A 22-4 surge uma local a explicar que «deixou este senhor de fazer parte da colaboração d’ ‘O Jornal’, por alegadamente ter desrespeitado um grupo social, o dos chauffeurs, na última das suas ‘Crónicas da Vida que Passa’.» Vale a pena ler o texto completo da «Explicação necessária» da Direcção: «Devido à falta de compreensão do que seja uma folha independente, demonstrada nas frases grosseiras do sr. Fernando Pessoa ontem por lapso aqui publicadas, deixou este senhor de fazer parte da colaboração d’ O Jornal. Essas frases entendiam-se com pessoas por quem nós temos a maior consideração.»

Conta o autor da introdução: «Na sua última crónica publicada, Pessoa refere-se à inauguração daquela que apelida de ‘Associação de Classe dos Monárquicos’ procurando subverter de forma provocatória uma hierarquia de classes sociais, referindo-se a ‘operários manuelistas’, sentenciando ‘o proletariado organiza-se’ e comparando ainda os monárquicos à nova classe dos chauffeurs, que se caracterizaria por uma falta de habilidade ao volante. Ficaria claro que o irreverente cronista não seria «dispensado» (como alguns dizem, em vez dos particípios «despedido», «demitido» ou «desempregado») por Boavida Portugal [autor, em 1930, de um caricato «Eça de Queirós, Bolchevista»] devido à «ofensa» aos motoristas, mas sim aos monárquicos que militavam nas fileiras do «Integralismo Lusitano».

A ironia residia em que Fernando Pessoa, de uma forma tão clara e simples quanto possível, colocava problemas muito – demasiado? – sérios, pondo em causa múltiplas ideias-feitas adoptadas pela opinião dominante. As «provocações» do poeta, nas seis crónicas que fez publicar no periódico, teriam sido de monta. Fernando Cabral Martins exemplifica: «a defesa da incoerência política, devendo-se ser ‘republicano de manhã e monárquico ao crepúsculo’; a defesa da ‘desintegração mental’ e da ‘anarquia portuguesa’; o ‘culto prolixo e doentio da vida interior’; a defesa da traição [à pátria] como uma ‘opinião político-filosófica’»; et cetera.

Falasse do que falasse, Fernando Pessoa era inovador. Observe-se a sua «defesa» da incoerência, que obviamente não era aquilo que parecia: «Ser coerente é uma doença, um atavismo, talvez; data de antepassados animais em cujo estádio de evolução tal desgraça seria natural.» (….) «Uma criatura de nervos modernos, de inteligência sem cortinas, de sensibilidade acordada, tem a obrigação moral de mudar de opinião e de certeza várias vezes no mesmo dia. Deve ter, não crenças religiosas, opiniões políticas, predileções literárias, mas sensações religiosas, impressões políticas, impulsos de admiração literária.» Impossível confundir a ironia do poeta com a sorumbática e oportunista banalidade dos políticos que por aí nos vão debitando que mudam de opinião porque a realidade muda ou dos pseudo-intelectuais que se afirmam «ateus sob um sol descoberto» e «católicos ultramontanos a certas horas de sombra e de silêncio».

Surpreendente é também a sua tentativa de explicitar, em plena Grande Guerra, o que haveria de comum entre portugueses e alemães: «Parecemo-nos muito com os alemães. Como eles agimos sempre em grupo, e cada um do grupo porque os outros agem. Por isso aqui, como na Alemanha, nunca é possível determinar responsabilidades: elas são sempre da sexta pessoa num caso onde só agiram cinco. Como os alemães, nós esperamos sempre pela voz de comando. Como eles, sofremos da doença da Autoridade – acatar criaturas que ninguém sabe porque são acatadas, citar nomes que nenhuma valorização objectiva autentica como citáveis, seguir chefes que nenhum gesto de competência nomeou para as responsabilidades da acção. Como os alemães, nós compensamos a nossa rígida disciplina fundamental por uma indisciplina superficial, de crianças que brincam à vida. Refilamos só de palavras. Dizemos mal só às escondidas. E somos invejosos, grosseiros e bárbaros, de nosso verdadeiro feitio, porque tais são as qualidades de toda a criatura que a disciplina moeu, em quem a individualidade se atrofiou.»

A sua «apologia» da imaginação terá suscitado perplexidades várias: «O excesso imaginativo do português, que tão daninho lhe tem sido, só pode ser curado mediante uma cultura cada vez maior da imaginação portuguesa. Educar as novas gerações no sonho, no devaneio, no culto prolixo e doentio da vida interior vem a dar em educá-las para a civilização e para a vida. Sobre ser fácil e agradável, o tratamento é de resultado seguro.»

Havia «boas» razões para um qualquer Boavida Portugal «pôr na rua» o poeta que ousara «beliscar» o brio profissional dos chauffeurs de Lisboa…

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Nota bene: Todos os textos assinados por Fernando Pessoa se encontram nesta edição transcritos respeitando a sua ortografia. Não se trata de uma «chinesice» do editor, Pedro Sepúlveda: como este faz notar, o poeta «defendia, por um lado, uma ortografia etimológica, por outro, assente numa escolha individual do escritor». À atenção de todos os interessados, em especial das altas instâncias que têm o hábito de papaguear a estafada frase de Fernando Pessoa sobre «a minha pátria» e «a língua portuguesa».

Fernando Pessoa, «Crónicas da vida que passa», Ática, 2011, 102 páginas