Vieira entre as mulheres

António Rego Chaves

Não foi decerto por capricho que os autores deste ensaio, distinguido com o Prémio Monografia da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, dedicaram às respectivas filhas o seu trabalho: desde o século XVII até aos nossos dias, a diferença tornou-se abissal, na Ibéria, no que se refere a direitos da mulher. Ganhámos todos, sobretudo porque, como Hegel ensinou, onde há senhores e escravos, o escravo é tão escravo da relação com o senhor quanto o senhor é escravo da relação com o escravo.

Imagino uma jovem universitária reagindo hoje às fastidiosas arengas do Padre António Vieira, por muitos considerado o mais insigne prosador do Barroco, contra o «sexo frágil»: «Olha o cota do sermonário! Bué machista. Mas que queria ele para as mulheres, esse fóssil, esse troglodita?» A jovem seria um tanto injusta, pois o eminente escritor procurou escapar a não poucos dos preconceitos triunfantes no seu tempo, incluindo os que visavam os cristãos-novos e os índios. É certo que, para o sacerdote católico, ameríndios e negros, homens e mulheres, não possuíam idênticos direitos. Aí, convenhamos, não fugiu ao estigma da época. Os negros, comprados na costa africana e chegados ao Brasil como simples mercadoria, não viram por ele contestado o seu «fatal» destino de escravos. Porém, o jesuíta respeitava-os enquanto seres humanos e censurava os colonos pelos maus-tratos que lhes eram infligidos.

Toda esta «católica» tranquilidade de consciência perante a escravatura dos negros provinha de São Paulo que, aliás, também difundiu não poucas «barbaridades» acerca das mulheres. Acentua o douto Tom Earle, da Universidade de Oxford, que «a Igreja seiscentista era francamente misógina» e que António Vieira «não era o menos violento dos que denunciavam os erros do sexo considerado fraco». E aproxima o discurso do sacerdote da evocação de um quase bretoniano «amor louco», pois Vieira imagina que Eva antes quis ter Adão no desterro, mas junto de si, do que no Paraíso sem ela. Acaba por conceder que «o leitor moderno fica francamente horrorizado perante a crueldade com que o pregador persegue as mulheres, cuja tendência para se desviarem do caminho certo, evidenciada por Eva, era tal que, segundo o pregador, nem deviam sair de casa para assistir ao culto religioso.» (…) «A única consolação para o sexo feminino era uma maior probabilidade de vida eterna porque, já que as mulheres não podiam sair à rua, tinham menos ocasião para pecar do que os homens.»

Claro está que, neste «paradisíaco» universo androcêntrico, existia uma paradigmática antinomia: Eva, a tentadora, que conduz o homem à perdição, e Maria, «mãe de Deus», que o encaminha para a redenção (Ana Hatherly). É inequívoca a misoginia: Eva condenada por excesso, Maria salva por defeito. Síntese: a sexualidade feminina ou se manifesta, e é pecaminosa, ou se reprime, e poderá conduzir à santidade. Em qualquer caso, torna-se inegável a negação da identidade da mulher enquanto mulher.

Registemos, evitando cair em anacronismos históricos e integrando-a na época, uma das imensas «enormidades» saídas da pena de Vieira que mais poderão chocar as leitoras e os leitores contemporâneos: «Quando Deus criou o homem e a mulher, foi com grande diferença, ainda nos termos com que o refere a Escritura. Do homem diz que o formou Deus; da mulher, que a edificou. (…) Não quis o Autor da Natureza que a mulher se contasse entre os bens móveis. O edifício não se move do lugar onde o puseram; e assim deve ser a mulher; tão amiga de estar em casa, como se a mulher e a casa foram a mesma coisa.» Porém, a investigadora Ana Vicente transcreve, num ensaio sobre «A representação da mulher portuguesa em viajantes estrangeiros», este delicioso texto, já do século XVIII: «A visita das igrejas durante a Semana Santa faz crescer mais o número de adultérios num só dia do que em todo o resto do ano. (…) Mais de um português deve o seu nascimento às orgias nocturnas ou ajuntamentos báquicos destas piedosas funções. As mulheres portuguesas também devem promover e autorizar estas romarias, porque não gozando elas de tanta liberdade como em França ou na Inglaterra, há donzelas que estão esperando pelo tempo em que com a sua família hão-de ir à romaria, para aparecer ao mundo, fazer tremular os seus adornos e muitas vezes premiar as finezas e suspiros dos seus apaixonados.»

Feitas as contas, para Vieira como para a generalidade da sociedade seiscentista portuguesa, à mulher deve ser exigida a reclusão, a fim de se reprimir com eficácia «o [seu] perigoso desejo de cirandar.» (…) «É tal a inclinação e tão impaciente na mulher o apetite de sair e andar, que por sair e andar deixou Eva o esposo, e por sair e andar deixou a Deus.» Dir-se-ia que não se pode ir mais longe em matéria de misoginia. Ou pode? Continuemos, então: «Os homens no sexo saem aos pais, e na inconstância às mães. Porém, daqui mesmo se colhe que tão inconstantes são os homens, como as mulheres: os homens porque filhos de tais mães, e as mulheres porque mães de tais filhos. A mulher inconstante por condição; o homem inconstante por nascimento; a mulher, como a Lua, por natureza; o homem, como o mar, por influência.» Mas há ainda «melhor»: «Eram as Marias umas mulheres tão pouco mulheres, eram umas mulheres tão varonis, umas mulheres tão homens, que de noite saíram das suas casas, de noite passaram da cidade, de noite andaram por lugares desertos e despovoados, e tão medonhos como costumavam ser os cemitérios dos defuntos, e os lugares onde padecem os justiçados.» (…) «Estas Marias estavam defronte do sepulcro de Cristo morto, pasmaram, mas não tremeram.» Sublinhe-se bem: eram «mulheres-homens», «mulheres-varonis», as únicas pessoas que foram à procura do Cristo ressuscitado. Portanto, as Marias não eram «bem» mulheres, eram até talvez mais masculinas do que femininas. Para o padre, embora venerador de «santas», o essencial estava dito sobre o «segundo sexo». Para as mulheres, havia que esperar ainda uns bons séculos…

José Eduardo Franco e Maria Isabel Morán Cabanas, «O Padre António Vieira e as Mulheres», Campo das Letras, 2008, 233 páginas