Salazarismo e literatura (Luís Trindade)

António Rego Chaves

Os literatos nacionalistas dos primeiros decénios do século XX tiveram a seu cargo uma rude e sinistra tarefa: cortar a cabeça à Geração de 70, um espinho encravado no provincianismo intelectual português. Queriam, a qualquer preço, fazer esquecer aqueles ideólogos que, como Antero de Quental, Oliveira Martins ou o Eça-leitor-de- Proudhon se tinham, na sua óptica, transviado e transformado em perigosos agentes do pensamento universalista, onde não cabiam tradicionais crenças e atávicos preconceitos do chamado «Portugal profundo», ou seja, da sua conformada «maioria silenciosa». Impunha-se, pois, ignorar o Iluminismo, a Revolução Francesa, o Liberalismo, a geração de Garrett e Herculano e, sobretudo, claro está, os perigosos antros onde se tinham instruído os nossos primeiros socialistas.

Os escritores que de alguma forma prepararam entre nós a Ditadura não foram nem os de Orpheu, nem os da Presença, muito menos os das novas tendências sociais do realismo, nomeadamente Ferreira de Castro e José Rodrigues Miguéis. Poetas como Afonso Lopes Vieira, António Corrêa de Oliveira ou Mário Beirão iam muito mais ao encontro das mentalidades conservadoras portuguesas e tornaram-se por isso bem mais conhecidos – e estimados – do que Fernando Pessoa, Sá-Carneiro ou José Régio, para só referir três dos nomes maiores da nossa vida literária no pré-salazarismo.

Estas considerações tornavam-se necessárias para apresentar o estimulante trabalho de investigação de Luís Trindade a que o autor deu o curioso título, a evocar um romance policial, «O Estranho Caso do Nacionalismo Português – O Salazarismo entre a Literatura e a Política.» O ensaísta é bem claro quanto à actualidade do tema: «A história não fala de coisas mortas: à medida que o tempo passa, reemergem na sociedade portuguesa sinais do autoritarismo político, da instrumentalização intelectual e do conformismo social que, desde o século XX, em Portugal se chama salazarismo.» Acrescenta, no entanto: «A um povo fundamentalmente passivo e obediente, que explicava o Estado Novo, o neo-realismo opôs uma sociedade esmagada e insubmissa que justificou a democracia. Os neo-realistas partiram de uma noção clara acerca do papel político da arte e da cultura. E, mesmo que as pensassem num quadro nacional, pensavam-no a partir de uma perspectiva de classe que permitia resistir à cultura exclusivamente entendida como identidade que hoje prevalece. E que era também dominante no momento em que o neo-realismo surgiu para a combater.» Surgiu decerto tarde de mais, mas a verdade é que se impôs…

E eis a tese – Luís Trindade prefere falar em «problema» – deste notável estudo: «O nacionalismo é uma formação cultural que apaga os traços da sua construção porque consiste em fazer-se passar pela natureza das coisas.» (…) «A cultura nacionalista torna invisível o seu papel político, sendo essa invisibilidade, precisamente, o que garante a eficácia política.» (…) «Tal como aqueles que reclamam estar do lado certo da história, os autores do nacionalismo não se apresentam como tal: aquilo que escrevem não é propriamente da sua autoria, são antes intérpretes, porta-vozes de algo superior a eles próprios, um universal que os ultrapassa.»

O que parece ser criação e património dos dominados não passa, afinal, de um «instrumento de dominação» que «está nos livros, nos filmes, nos eventos culturais e nos programas políticos». Importa, pois, desmontar «os discursos produzidos pelos escritores que maior relevo tiveram na construção do nacionalismo português apropriado pelo salazarismo como sua matriz cultural.» Quais foram, então, os zelosos arautos da desgraça?

O linguista – e colaborador do despótico João Franco – Agostinho de Campos e o seu discípulo Fidelino de Figueiredo, ora adepto da ditadura de Pimenta de Castro, ora sidonista, ambos declarados adversários da monarquia constitucional e da República; o perpétuo reaccionário Augusto de Castro, director do «Diário de Notícias»; os já referidos Afonso Lopes Vieira, que queria «reaportuguesar Portugal», António Corrêa de Oliveira, notado pelos seus panfletos nacionalistas e anti-republicanos em verso, e Mário Beirão, que viria a ser o autor do Hino da Mocidade Portuguesa; João Ameal, sobrinho de Augusto de Castro, monárquico amante da natureza e «inimigo» da modernidade, aspirante a desempenhar o papel de ideólogo do salazarismo; o romancista Antero de Figueiredo, ruralista, nacionalista e católico conservador; Joaquim Manso, um simpatizante da «ordem» à bruta maneira de Mussolini e Primo de Rivera, director do «Diário de Lisboa; Norberto de Araújo, redactor principal do mesmo periódico, tradicionalista; Júlio Dantas, tão «arrasado» como celebrizado pelo futurismo de Almada Negreiros no «Manifesto Anti-Dantas». Tudo isto num país onde, segundo afirmaria João Gaspar Simões em 1938, «não há 5000 pessoas capazes de interesse intelectual constante.» Quer isto dizer que mais de metade de Portugal, que não sabia ler, tinha o que merecia? Óbvio que não. Mas, quanto aos outros, a questão não era se tinham o que mereciam, mas o que queriam: seria mesmo a imutável paz dos cemitérios?

Pouco a pouco opera-se a mudança. O centro do poder literário desloca-se da Academia das Ciências para o Secretariado de Propaganda Nacional. «O mundo de Dantas transforma-se no mundo de António Ferro». O infatigável panegirista de Salazar reivindicaria a exclusividade da palavra escrita sobre o «Chefe». A tolerância da República escancarara as portas ao autoritarismo do Estado Novo. Depois da Revolução de 1910, a Contra-Revolução de 1926 iria ditar a sua iníqua lei durante quase meio século.

Tudo se articula, então: culto do país rural e histórico, fanatismo católico, concepção da mulher como «fada do lar». A Exposição do Mundo Português, em 1940, marca, segundo o autor, «a mais radical separação entre as imagens (o imaginário) e as condições de vida dos portugueses.» (…) «O que de mais importante aconteceu na Exposição do Mundo Português foi a sua capacidade de ocultar o que ali não estava exposto.»

O consenso nacionalista quis tornar irrelevantes a miséria e a ignorância do povo, tal como a opressão a que este se achava sujeito. Nessa medida, a Exposição de 1940 ajuda a dar consistência e amplificar o neo-realismo de Alves Redol ou Soeiro Pereira Gomes, pressagiando o PREC de 1974/75.

Luís Trindade, «O Estranho Caso do Nacionalismo Português», Imprensa de Ciências Sociais, 2008, 349 páginas