Séneca, pensador de 2005

António Rego Chaves

Lúcio Aneu Séneca nasceu em Córdova cerca do ano 1 da nossa era e viveu em Roma, nas cortes de Calígula, Cláudio e Nero, de quem foi preceptor e por cuja vontade se suicidaria em 65. O seu estoicismo tem sido com frequência aproximado do cristianismo, não apenas com base no pensamento moral e metafísico que nos legou, como, até, devido a uma pretensa troca de correspondência com Paulo de Tarso. Concebeu o acto de filosofar como uma via privilegiada para alcançar a tranquilidade do espírito – que considerava incompatível com a frenética actividade dos homens à procura de efémeras glórias, incomensuráveis riquezas ou poder político. Socorrendo-se com frequência de epicuristas, cínicos, platónicos ou cépticos, transmitiu, por meio da sua obra, uma sólida lição de sabedoria concreta aos seus contemporâneos. Nunca orientou o magistério para um conjunto mais ou menos coerente de considerações especulativas, mas pretendeu conduzir os seus leitores à adopção de uma prática quotidiana susceptível de os levar a concentrar a atenção, não no acidental conforto emprestado pelos bens materiais – de que, aliás, desfrutou em abundância –, mas em perenes valores ao alcance da meditação.

Na excelente introdução que escreveu para a edição portuguesa da obra-prima do pensador, as «Cartas a Lucílio» (Gulbenkian), J. A. Segurado e Campos faz notar que este livro é constituído por «textos de direcção espiritual, exercícios de meditação mais do que exposições de ordem e finalidade meramente teórica, o que, todavia, não significa que Séneca se exima, quando é caso disso, a discutir amplamente problemas de índole teórica». E acrescenta: «O estoicismo não é uma filosofia para fracos: quem disso não esteja convencido acompanhe a carreira de Lucílio e verificará por si que só à custa de muito esforço (mesmo físico!), de constante meditação e de um férreo exercício de vontade será possível a alguém aproximar-se da imagem do sapiens tal como Séneca, com uma certa rigidez de “retorno às origens”, o concebeu.»

«Filósofo da condição humana», como lhe chamou o Padre Manuel Antunes, Mestre inesquecível, o pensador cordovês não se limitou a alimentar a curiosidade de estudiosos em busca de erudição; verdadeiro humanista, ensinou os seus discípulos a viver – e até a morrer – com a serenidade própria de assumidos herdeiros de uma tradição cultural multissecular. De acordo com a sua lição, nenhum homem possui a liberdade de escolher o momento de nascer, mas todos são livres de eleger a ocasião de abandonar a vida. Como se sabe, Séneca levou esta convicção até às últimas consequências: perante a impossibilidade de contribuir minimamente para o progresso moral de uma Roma governada por Nero, «convertendo-o» à justiça e à clemência, abandonou a orla do devasso tirano matricida e fratricida, de cujos inúmeros crimes se tornara não poucas vezes cúmplice, e terá conspirado para o derrubar. Denunciado, optou pelo suicídio, abrindo as veias.

A edição portuguesa da obra «Da Brevidade da Vida» inclui, também, os textos «Consolação para Hélvia» e «Da Tranquilidade do Espírito». Neste, Séneca prescreve ao seu amigo estóico Aneu Sereno a terapêutica adequada aos males de que este se queixa, instabilidade, insatisfação consigo próprio, ansiedade, tédio, melancolia, depressão: por exemplo, a prática política útil à comunidade, a ociosidade enquanto consagração à vida contemplativa, a amizade, a moderação em tudo, até na riqueza, revelando-se arguto observador dos comportamentos sociais e profundo conhecedor das ambições humanas. «Consolação a Hélvia» tem como objectivo expresso convencer sua mãe de que não deve sofrer pelo facto de ele, cidadão do mundo, se encontrar exilado pelo imperador Cláudio na Córsega, pois, onde quer que esteja, se entregará sempre à leitura e à busca da sabedoria. Finalmente, o livro que dá o título a esta edição constitui uma apologia da vida consagrada à meditação, bem longe do quotidiano dos homens vulgares que, numa permanente, feroz e mesquinha peleja em que todos os meios parecem ser legítimos, procuram encontrar na conquista de bens materiais a razão de ser da sua existência.

O filósofo não se contenta com relevar que o tempo «corre rápido e célere»; acrescenta que tal sucede porque o desperdiçamos em «actividade deplorável», procedendo como se estivéssemos destinados a viver para sempre. E confidencia ao seu amigo Pompeio Paulino, a quem escreve: «Não te envergonhas de reservar para ti apenas os restos da tua vida e de devotares à sabedoria apenas o tempo que não consegues gastar em nenhuma actividade? Como começamos de facto a viver apenas quando a vida vai acabar! Somos estúpidos ao esquecer-nos da nossa mortalidade e ao adiar os nossos planos de vida para quando tivermos cinquenta ou sessenta anos, visando começar a viver numa idade a que poucos chegam!» (…) «Examina como toda essa gente gasta o seu tempo – quanto dedicam às suas fazendas, a preparar armadilhas aos outros ou a recear as que lhes armam, a prestar vassalagem aos outros ou a serem eles próprios cortejados, a caucionarem ou a serem caucionados, a banquetearem-se (considerado agora um negócio oficial): verás como as suas actividades, boas ou más, não lhes dão sequer tempo para respirar.» Que há de mais actual?

Ó perpétuos políticos profissionais, ó vestais do défice público zero, ó incansáveis assalariados à conquista de um lugar sentado à direita do patronato, quem de entre vós seria capaz de subscrever estas sábias frases com quase dois mil anos? Quem de entre vós seria capaz de se opor a que a idade de reforma acompanhasse a evolução da esperança média de vida? Quem de entre vós seria capaz de preterir os eurolucros do negócio aos subtis frutos do ócio, ao admirável projecto existencial de Séneca em defesa do cultivamento da vida interior, da humanização das relações interpessoais, da arte de aprender a viver e a morrer?

Séneca, «Da Brevidade da Vida», Coisas de Ler, 2005, 108 páginas