Três perguntas a Schopenhauer

António Rego Chaves

Já apresentámos Irvin D. Yalom, professor emérito de psiquiatria da Faculdade de Medicina Universidade de Stanford, ao falarmos do seu livro «Quando Nietzsche Chorou». Em «A Cura de Schopenhauer», o escritor movimenta-se uma vez mais com extrema desenvoltura entre o «romance de ideias», o ensaio, a biografia e o diálogo filosófico – mantendo-se o resultado fascinante. No centro da obra, o autor de «O Mundo como Vontade e como Representação» (1819) e de «Parerga e Paralipomena» (1850), ou seja, um dos maiores pensadores alemães do século XIX.

Misantropo, misógino, hipocondríaco, egoísta, avarento, agressivo, sarcástico, arrogante, admirador de Platão e Kant, crítico feroz da sede de riqueza, poder e fama que atribuía a Fichte e Hegel, atento à sabedoria transmitida pelo hinduísmo e pelo budismo, Schopenhauer será praticamente um desconhecido até à publicação de «Parerga e Paralipomena», obra onde a sua mundividência surge sob a forma de observações esparsas, ensaios e aforismos e que o tornará admirado em toda a Europa.

Roger-Pol Droit comentava, há meses, aludindo à primeira tradução integral para francês (com mais de um século e meio de atraso!) do texto que o tornou célebre: «Uma visão angélica da posteridade fará concluir: tão grande número de qualidades acabou por brilhar aos olhos da época. A verdade, finalmente, impôs-se. Uma outra interpretação é possível, menos optimista, mais schopenhaueriana: o entusiasmo não carece de apoio sólido. Precipita-se facilmente sobre a obra menos difícil e menos importante. Todo o êxito não passaria, então, de um logro e de um mal-entendido.»

O ponto de partida de Irvin D. Yalom é o seguinte: um psicoterapeuta de sucesso sabe de surpresa que sofre de uma forma letal de cancro da pele, um melanoma maligno. Está certo de que lhe resta, na melhor das hipóteses, um ano de vida plena, isto é, de vida não meramente vegetativa. Ao pretender fazer um balanço crítico do que foi a sua longa actividade profissional, recorda um antigo paciente, Philip, que considera o grande falhanço da sua carreira. Contacta-o e este, agora aparentemente «curado», acabará por lhe revelar que deve a sua pretensa «normalidade» a Arthur Schopenhauer, em cuja obra meditou durante anos a fio e cujas ideias acabou por interiorizar.

O ex-doente encaminha então o seu antigo terapeuta para o pensamento do filósofo: aconselha-o a começar por ler atentamente aqueles que considera serem os textos mais marcantes do romance «Os Buddenbrook», quando o protagonista compreende que já só lhe resta muito pouco tempo de vida. E recorda a angústia vivida pela personagem criada por Thomas Mann: «Quando a morte o veio buscar, Thomas Buddenbrook ficou confuso e desesperado. Nada daquilo em que acreditava o consolava: nem a religião, que há muito tinha deixado de satisfazer as suas necessidades metafísicas, nem o seu cepticismo e a sua inclinação pelo materialismo de Darwin.» É então que descobre por acaso na sua estante um volume que há alguns anos tinha adquirido. Maravilha-o «como uma mente mestra se poderia apoderar dessa coisa cruel e irónica chamada vida. A extraordinária clareza de visão do livro encantou o doente e as horas passaram sem que ele parasse de ler. Até chegar ao capítulo intitulado ‘Sobre a morte e a sua relação com a nossa imortalidade’ (sic) e, inebriado pelas palavras, continuou, como se lesse para viver. Ao terminar, Thomas Buddenbrook havia-se transformado num homem que encontrou o conforto e a paz de que precisava.»

Impossível esboçar nesta página, hoje mais «curta» do que nunca, as principais linhas de força da biografia e do pensamento de Arthur Schopenhauer. Mas acentuemos que Julius, o terapeuta, não se «converterá» às ideias do filósofo. Escreverá, mesmo, no seu diário: «A ideia de me reintegrar na unidade universal sem qualquer interferência minha ou das minhas recordações é um gélido consolo. Não, nem chega a ser consolo.» Desabafará: «Pensar que um dia me juntarei a uma vaga e etérea força universal não me traz qualquer consolo. Se a consciência não permanece, que consolo há? Do mesmo modo, pouco me consola saber que as moléculas do meu corpo se dispersarão no espaço e que o meu ADN acabará por fazer parte de uma qualquer outra forma de vida.»

E quanto à existência humana e às relações interpessoais? Deixemos responder Philip, o ex-paciente de Julius, recordando e apoiando sem quaisquer reservas o seu mestre: «Schopenhauer disse que os bípedes precisavam de se juntar em volta do lume para se aquecer. Mas alertou quanto ao perigo de se chamuscarem por ficarem muito perto do lume. Ele gostava dos porcos-espinhos, que se encostam para se aquecerem, mas usam os espinhos para manter as distâncias. Valorizava muito o seu isolamento, dependia apenas de si mesmo para ser feliz.» (…) «Quanto mais amigos se tem, mais pesada fica a vida e mais sofre a pessoa quando os perde.» (…) «Quanto mais se tem dentro de si, menos se quer dos outros.» (…) «No passado, quando eu queria a companhia dos outros, pedia o que eles não me davam, ou melhor, não podiam. Aí, sim, vi o que era a solidão. Vi muito bem. Não precisar de ninguém é nunca estar só.»

É lícito perguntar: 1) devem a fuga ao convívio social, o autismo, a fobia social, a personalidade esquizóide e anti-social, o narcisismo, a incapacidade de amar e de valorizar os outros, ser alvo da psicoterapia?; 2) deve o verdadeiro encontro entre dois seres (a relação total e afectuosa de um «eu» e de um «tu») ser considerado um contraponto «saudável» às obsessões próprias da misantropia?; 3) «last but not least», devem os humanos não ser indiferentes à doença, à dor, à velhice e à morte dos seus semelhantes, como se deuses – ou demónios – julgassem ser? Temos boas razões para acreditar que o último Schopenhauer poderia ajudar-nos a responder com um benévolo «sim» a estas três perguntas suscitadas pela neurose que o afectou e afecta tantos daqueles a quem fraternalmente acabaria por chamar os seus «companheiros bípedes».

Irvin D. Yalom, «A Cura de Schopenhauer», Saída de Emergência, 2006, 302 páginas