«Wittgenstein e o Método da Filosofia» (Nuno Venturinha)

Um homem admirável

António Rego Chaves

É um trabalho de indiscutível mérito este que tem por base uma dissertação de doutoramento que o autor apresentou em 2006 à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. O leitor interessado no tema não deixará de lamentar, contudo, que o aprofundamento dos seus conhecimentos não lhe seja possibilitado pela decifração das inúmeras longas notas de citações em alemão que lhe são transmitidas sem tradução para português; explicar-se-á a falta, mas seria mais sensato tê-la evitado numa edição de mil exemplares que não se destina apenas a atléticos germanistas.

Nuno Venturinha cita Pascal em francês (porque são cada vez menos os que por cá aprendem esta língua, transcrevemos a tradução de Américo de Carvalho na edição prefaciada pelo Padre Manuel Antunes): «Quando se nos depara o estilo natural, sentimo-nos muito admirados e encantados, porque esperávamos ver um autor e encontramos um homem. Ao contrário daqueles que têm bom gosto e que, vendo um livro, crêem encontrar um homem e ficam muito surpreendidos por encontrarem um autor: ‘Falaste mais como poeta do que como homem’ [Petrónio, Satíricon, 90]. Esses honram bem a natureza, pois lhe ensinam que ela pode falar de tudo, e mesmo de teologia.» Se o nome de algum filósofo do século XX nos ocorre ao ler estas frases, esse nome é, sem dúvida, o de Ludwig Wittgenstein.

Mas não foi o autor do «Tratado Lógico-Filosófico» quem disse que «acerca daquilo de que não se pode falar, tem de se ficar em silêncio»? É certo que sim, não sendo todavia menos certo que nem por isso se silenciou sobre Deus em alguns dos seus escritos, embora não os tenha divulgado. Bem conhecida se tornou a sua «descoberta», no início da «Grande Guerra», do «Evangelho Abreviado» de Tolstoi, texto que o acompanhou nas frentes de batalha, razão por que os seus camaradas de regimento lhe chamavam «o homem do Evangelho». Recordemos apenas dois aforismos dos «Cadernos/1914-1916», onde a influência do venerável patriarca russo não poderia ser mais vincada: «Ao sentido da vida, isto é, ao sentido do mundo, podemos chamar Deus». (…) «Orar é pensar no sentido da vida».

Por que razão notamos aqui, mais nítida do que nunca, a mão de Tolstoi? Leiamos o «Evangelho Abreviado», não na edição em língua inglesa da Universidade do Nebrasca («The Gospel in Brief»), aliás dedicada «à memória de Ludwig Wittgenstein», mas na versão em castelhano, integral («El Evangelio Abreviado»), da KRK. Escreve Tolstoi: «O Evangelho anuncia que o princípio de tudo não é o Deus externo, como crêem os homens, mas o entendimento da vida. E por isso o que os homens chamam Deus, segundo o Evangelho, é o entendimento [compreensão, conhecimento] da vida.» E eis como Tolstoi «traduz» o Evangelho de João, 1, 1 («No princípio era o Verbo; o Verbo estava com Deus; e o Verbo era Deus.»): «O entendimento da vida converteu-se em fundamento e princípio de tudo. O entendimento da vida pôs-se no lugar de Deus. O entendimento da vida é Deus.» Tolstoi falava do «entendimento da vida», Wittgenstein referiu-se ao «sentido da vida»… Qual a diferença?

Paul Engelmann, o arquitecto amigo de Wittgenstein, esclareceu há muito o que distinguia o filósofo de Rudolf Carnap ou Willard Quine, John Langshaw Austin ou Gilbert Ryle, Gottlob Frege ou Bertrand Russell, que pareciam querer impor um silêncio perpétuo aos metafísicos: «Toda uma geração de discípulos pôde tomar Wittgenstein por um positivista, porque ele tinha em comum com os positivistas algo de enorme importância: tal como eles, traça uma fronteira entre aquilo de que podemos falar e aquilo que devemos calar. A única diferença é que eles nada tinham para calar.»

Wittgenstein recusava sacrificar a sua meditação às exigências académicas. Autodidacta, estava longe de ter uma visão técnica ou profissional da Filosofia. No capítulo que consagra às páginas codificadas dos «Cadernos» de 1914-1915, Nuno Venturinha traduz um excerto de uma esclarecedora carta a Russell: «Sobre lógica não posso escrever-te hoje nada. Talvez julgues que é um desperdício de tempo pensar sobre mim mesmo; mas como posso ser um lógico, se ainda não sou um homem? ‘Antes de tudo’ [sublinhado por L.W.] tenho de acertar contas comigo mesmo.»

Em 1916, no «Diário», será ainda mais explícito: «Pensa na finalidade da vida. Isso é mesmo o melhor que podes fazer.» A sua procura, mesmo quando parte em busca dos fundamentos da lógica, visa muito longe, nada mais, nada menos, do que aquilo a que chama a «essência do mundo». A «essência do mundo», o «sentido da vida», «Deus». Qual a diferença?

«Crer num Deus significa compreender a pergunta pelo sentido da vida. Crer num Deus significa ver que os factos do mundo ainda não são tudo. Crer num Deus significa que a vida tem um sentido.» Entendimento, compreensão, conhecimento (Tolstoi) ou sentido da vida (Wittgenstein). Não avalizaria Tolstoi um aforismo de Wittgenstein segundo o qual «é correcto dizer: a consciência é a voz de Deus»? Qual a diferença?

«Faça-se a vontade Deus», poderiam então dizer o russo dos «Evangelhos Abreviados» e o austríaco dos «Cadernos»; e tal não seria senão obedecer à consciência de cada um deles, ou seja, a única instância susceptível de lhes apresentar um imperativo como categórico. Mas Wittgenstein não era só um empático leitor de Tolstoi, «conviveu» também assiduamente com Santo Agostinho, com Angelus Silesius, com Kierkegaard, com o William James das «Varieties of Religious Experience». Em suma, para escândalo dos apóstolos da «filosofia científica», o seu desassossego espraiava-se até aos «confins do Oceano», infinitamente longe das «tabelas de verdade» que obcecavam os positivistas lógicos. Como nos sugeriu o texto de Pascal evocado por Nuno Venturinha, em Wittgenstein há bem mais do que um autor, pois ele foi, acima de tudo, um homem – e um homem admirável.

Nuno Venturinha, «Lógica, Ética, Gramática/Wittgenstein e o Método da Filosofia», Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2010, 423 páginas