Conversa acabada (Celan-Heidegger)

António Rego Chaves

Emmanuel Faye, num grosso volume de quase seiscentas páginas publicado na Primavera de 2005 em França, com o eloquente título «Heidegger: l’introduction du nazisme dans la philosophie», sustenta que o autor de «Ser e Tempo» fez o elogio da «transformação fundamental do mundo alemão» levada a cabo pela «visão do mundo por Hitler». Na esteira de Victor Farias e Hugo Ott, demonstra que, no decurso da Segunda Guerra Mundial, Martin Heidegger usou a palavra «metafísica» para magnificar a motorização da Wehrmacht, a selecção racial e a invasão da França. Recorda que o reitor da Universidade de Friburgo em 1933/34, logo após a subida de Hitler ao Poder, e depois ter sido assistente do «pai da Fenomenologia»,o grande filósofo judeu Edmund Husserl – que viria a trair e substituir como catedrático em nome da «pureza da raça ariana» –, exaltou a «voz do sangue» e «as forças da terra e do sangue», legitimou a «selecção racial» e o «pensamento da raça», negou a especificidade do genocídio hitleriano e, até, a essência humana das suas vítimas. Conclui que «está hoje definitivamente assente que o nazismo de Heidegger de forma alguma constituiu um erro de que ele se tenha mais tarde demarcado».

É já longa a história da influência em França do «Führer espiritual do nazismo» (expressão de Faye). Uma primeira vaga foi corporizada por Sartre, que aliás não dispunha, à data da edição de «O Ser e o Nada» (1943), dos textos e documentos hoje publicados. A segunda – marcada pelo «anti-humanismo» – seria encabeçada por Jean Beaufret e mesmo por Louis Althusser e Michel Foucault, após a publicação da «Carta sobre o Humanismo» (1947) de Heidegger. A terceira ficou indelevelmente ligada ao colaboracionista anti-semita belga Paul de Man. O que se passa hoje em França é bem sintomático da incultura política – ou da má-fé – dos novos heideggerianos, cujo slogan mais frequente parece ser o seguinte: «Quando não se percebe nada de Heidegger, ataca-se o seu nazismo.» Mas não se ficam por aqui: negam a adesão do filósofo à ideologia hitleriana, contestam a autenticidade do seu anti-semitismo, chegam a afirmar que a sua filosofia é incompatível com qualquer doutrina racista. Acresce que – «infelizmente», como teve a coragem de afirmar Emmanuel Levinas – é difícil negar que Heidegger foi, de facto, o mais importante filósofo do século XX.

Neste contexto, Hadrien France-Lanord, jovem professor universitário e tradutor de Heidegger, proclama que nem se digna ler o livro de Faye: diz agora refugiar-se na obra do mestre e ser indiferente ao seu percurso político, mas neste livro publicado em 2004 não pôde evitar a questão, ainda que tenha tentado reduzir o «diálogo» do «seu» filósofo com Paul Celan a um etéreo encontro entre o pensamento e a poesia. Porém, o nó do problema poderá não ser este, mas o que poderemos descobrir com a resposta a esta tão singela quanto brutal interrogação: «Que espécie de conversa é possível entre um nazi e um judeu que foi aprisionado num campo de trabalho nazi e a quem mataram num campo de extermínio nazi o pai e a mãe?»

Nascido em 1920 na Bucovina (Roménia) de pais judeus-alemães, Paul Celan fixar-se-á em 1948 na capital francesa, onde se suicidará em 1970, lançando-se ao Sena. É hoje considerado por muitos especialistas como o maior poeta do século XX depois de Rilke, mas a sua relação com a língua materna – a alemã – não foi pacífica. Escreveu em 1960 a Nelly Sachs: «Sabe, alguns nazis escrevem poemas. Esses homens escrevem poemas! O que não escreverão, os falsários!» Ter de se exprimir na língua dos carrascos de seus pais – e de Heidegger – foi algo com que talvez nunca tenha sabido lidar, porque, para ele, como acentua Carlos Ortega no prólogo à edição bilingue das suas obras completas publicadas em Espanha, «a poesia devia ter uma base moral». Daí que, de acordo com este crítico literário, o interesse de Celan por se encontrar com Heidegger se resumisse «a um desejo de confrontá-lo com as suas antigas declarações e posições da época hitleriana, com a sua provada filiação nazi.» Uma premeditada «descida aos Infernos», para usarmos as palavras de Jean Bollack.

Não é esta a tese defendida Hadrien Fance-Lanord, que não se cansa de repetir que Celan leu profundamente toda a obra de Heidegger, pela qual se sentia fascinado, ao mesmo tempo que considerava ter este reconquistado a «limpidez» para a língua alemã. Assentando as suas preocupações na «vizinhança da poesia e do pensamento» – que vizinhança sob o signo de Auschwitz da poesia de um poeta judeu e do pensamento de um pensador nazi? – France-Lanord refere-se a um pretenso e quase idílico «diálogo inacabado». Hans-Georg Gadamer atreveu-se, mesmo, a falar de «peregrinação» de Celan a Todtnauberg, isto é, à cabana de Heidegger na Floresta Negra. «A imagem é indecente, tanto para Celan como para Heidegger» – reconhece, num raro assomo de honestidade intelectual, France-Lanord.

Jean Daive testemunhou o que poderá ser interpretado como a chave de uma conclusão a tirar do encontro de 25 de Julho de 1967 em Todtnauberg entre Celan e Heidegger, transcrevendo um desabafo do poeta: «Queria ouvi-lo pedir-me perdão e convencê-lo a pedi-lo publicamente.» Ora Heidegger não fez nem uma coisa nem outra: ao seu ex-amigo Karl Jaspers confessara já, epistolarmente, a sua «vergonha» por ter contribuído «directamente e indirectamente» para a «malignidade do mal» nazi. Mas, apesar da clareza dos seus propósitos, o poeta não receberá do pensador mais do que uma vaga e nada «límpida» promessa de prosseguimento do diálogo – ou de mais um estéril monólogo a dois. Daí esta frase incisiva de Paul Celan, escrita poucos meses antes do suicídio, numa carta que teria ficado por enviar ao destinatário, Martin Heidegger: «…pelo vosso comportamento enfraqueceis de maneira decisiva o poético e ouso suspeitá-lo o filosófico na vontade séria de responsabilidade que pertence a ambos.» Dito isto, nada mais havia a dizer. A conversa estava, de uma vez por todas, acabada.

Hadrien France-Lanord, «Paul Celan e Martin Heidegger – Le sens d’un dialogue», 2004, 313 páginas