Pensar Sartre em Portugal (Vergílio Ferreira)

António Rego Chaves

Sabe-se que «O Existencialismo é um Humanismo» – texto de uma conferência pronunciada por Jean-Paul Sartre em 1946 – nunca adquiriu fama de obra «maior» do filósofo de «O Ser e o Nada» (1943), da «Crítica da Razão Dialéctica» (1960) e dos «Cadernos para uma Moral» (póstumo, 1983). No entanto, talvez valha a pena, nesta época em que muitos o citam mas ninguém o (re)lê, recomendar que nos debrucemos sobre esta espécie de catecismo existencialista ao alcance de todos os cérebros – ao contrário de outros pequenos textos anteriores do «homem-século», como «A Imaginação» e «A Transcendência do Ego» (ambos de 1936), «Esboço de uma Teoria das Emoções» (1939) e «O Imaginário» (1940). Repudiado por estalinistas e católicos, eis o pensador condenado ao isolamento próprio de quem se atreve a reflectir à margem dos sistemas filosóficos em voga no seu tempo.

«Natureza humana»? Que é isso? Algo de imutável, essência que precede e determina a existência? Melhor será dizermos que a existência precede a essência, falarmos de «condição humana», porque em boa verdade somos aquilo que fazemos de nós próprios, projectos pessoais pelos quais nos teremos de assumir, sem desculpas, como inteiramente responsáveis. Detectada a ausência de Deus, mergulhamos na angústia da escolha – e dessa angústia só poderemos emergir comprometendo a nossa liberdade, renovando-nos pelo pensamento e pela acção. Numa única frase, simplificando: «o Homem está condenado a ser livre». Complicando um pouco – porque, como demonstrou Kierkegaard, «um “eu” não cabe num sistema» – e usando uma fórmula da «Crítica da Razão Dialéctica»: «a partir do dia em que a investigação marxista tomar a dimensão humana (…) como o fundamento do saber antropológico, o existencialismo não terá já razão de existir». Não ficará aqui implícito um convicto incitamento à simbiose entre o sartrismo e o humanismo do jovem Marx dos «Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844»?

Arredemos o solipsismo: cada um não é apenas responsável pela sua existência, mas também pela de todos os seus contemporâneos. Ao escolhermos o nosso destino individual e colectivo, estamos também a escolher o destino individual e colectivo dos que nos rodeiam, aqui e em todo o planeta onde vivemos. Elegendo a liberdade como valor supremo, é a minha liberdade e a liberdade dos outros que elejo como valores supremos – e comprometo-me a não abdicar de ambas. A minha liberdade é a liberdade de todos os homens, a liberdade de todos os homens é a minha liberdade. Eis o humanismo sartriano exposto nestas páginas agora reeditadas em língua portuguesa, mais uma vez com o denso prefácio de Vergílio Ferreira – romancista incontornável, diarista controverso, ensaísta clandestino por culpa de todos nós.

Era homem de grande cultura filosófica, o escritor de «Aparição». Não assimilara apenas Lucrécio e Marco Aurélio, Cícero e Montaigne, Santo Agostinho e Pascal, Kant e Hegel, Jaspers e Heidegger. Leiam-se os cinco volumes de «Espaço do Invisível», ou «Pensar», ou o presente texto: ele soube falar-nos de Berkeley e Kant, de Teilhard de Chardin e Michel Foucault, de Descartes e Husserl. Mas raros foram os que, cá pelo burgo, se manifestaram interessados em escutá-lo. Eduardo Lourenço parece ter encontrado a chave que desvenda este «mistério»: «…a heterodoxia não é fácil. Serviço divino a poucos cometido, paga-o a moeda que os deuses amam: a amargura e a solidão.» Fez bem Vergílio Ferreira ao escolher tais palavras para encimar o seu ensaio: é que elas não apontam apenas para o muito parisiense Sartre do pós-guerra – impõem-nos, também, o macerado perfil do beirão transplantado para o contagioso vespeiro lisboeta da baixa intriga, das capelinhas literárias, da vil maledicência. Vespeiro que não o poupou – e ao qual ele não resistiu a responder, não poucas vezes, na «Conta-Corrente», na mesma lamentável e pequenina moeda.

Repare-se: estamos em Portugal, no Verão de 1961, e Vergílio Ferreira escreve em Fontanelas – calcule-se, em Fontanelas, tão longe de Saint-Germain-des-Prés, do «Les Deux Magots», do «Café de Flore». E sobre quem escreve ele? Pois disserta sobre o confesso ateu e libertino Jean-Paul Sartre, tido por um tenebroso «inimigo» por gente de «boas» famílias lusitanas, olhado de esguelha como «pequeno-burguês» não recuperável pela ortodoxia comunista, repudiado por empertigados catedráticos de Filosofia. É uma pedrada no charco: o «insignificante» homem da aldeia de Melo, Serra da Estrela, ousa meter a foice em seara alheia, discorre sobre Edmund Husserl e Martin Heidegger, socorre-se de bibliografia actualizada, passa a Sartre, não se fica pela obra do dramaturgo, do contista, do romancista, do ensaísta das «Situations». Atreve-se a tornar público que entende e estima «O Ser e o Nada» e a «Crítica da Razão Dialéctica». Uma autêntica bofetada nas inabaláveis certezas dos fanáticos da chamada «filosofia portuguesa» e do pretenso «realismo socialista», dos tomistas e neotomistas, dos kantianos e neokantianos, dos positivistas e neopositivistas, dos hegelianos, dos bergsonianos, dos husserlianos e dos heideggerianos do «establishment» universitário. Ninguém lhe perdoou nos salazarentos anos 60. Ainda hoje, poucos lhe perdoam ter posto em evidência muito do que, «neste país em miniatura» (Alexandre O’Neill), se ignorava e ele quis tornar público ao ter ousado fazer de si um intelectual demasiado europeu do século XX.

Jean Paul Sartre/Vergílio Ferreira, «O Existencialismo é um Humanismo», Bertrand Editora, 2004, 259 pag.