Um catolicismo musculado (A Contra-Reforma em Portugal)

António Rego Chaves

Escreveu António José Saraiva, em magistral síntese elaborada para o «Dicionário de História de Portugal» dirigido por Joel Serrão: «Os principais instrumentos da Contra-Reforma foram a Companhia de Jesus, a Inquisição e os índices de livros proibidos.» A Companhia de Jesus, porque «realizou o principal esforço missionário no sentido de reconquistar para a Igreja de Roma o terreno perdido nos países de língua germânica, conseguindo-o sobretudo na Baviera e na Áustria» – e também porque levou a cabo um «grande esforço pedagógico junto das elites», tendo os seus colégios substituído os dos humanistas. A Inquisição, porque se propôs «extirpar todos os vestígios, não só de heresia luterana, mas também de erasmismo e da tendência favorável ao compromisso entre os dois campos da cristandade» (hoje talvez escrevesse «diálogo ecuménico» em vez de «compromisso»). Os índices, porque «se proibiam as traduções da Bíblia e se mandavam sujeitar à censura prévia todos os livros a publicar. Além dos heréticos, eram incluídos numerosos humanistas, teólogos e escritores». (…) «No entanto, se descontarmos algumas ilhas em países germânicos e a Polónia, a Contra-Reforma só se implantou solidamente na Itália e na Península Ibérica, países sob a influência ou o domínio da Casa de Áustria.»

A Companhia de Jesus viria a sanear os professores do Colégio das Artes suspeitos de erasmismo, impedindo os mestres humanistas de leccionar e assegurando assim para si o monopólio do ensino pré-universitário. «No último quartel do século XVI toda a vida portuguesa é controlada pela Inquisição e pela Companhia de Jesus». São proibidas obras como a «Rópica Pnefma», de João de Barros, a «Menina e Moça», de Bernardim Ribeiro, ou a comédia «Eufrosina», de Ferreira de Vasconcelos, e manda-se expurgar textos de Erasmo, Dante ou Ariosto, ao mesmo tempo que «as livrarias eram sujeitas a buscas minuciosas, bem como os navios chegados do estrangeiro».

Na sua «História da Censura Intelectual em Portugal – Ensaio sobre a Compressão (sic) do Pensamento Português» (1926), José Timóteo da Silva Bastos , depois de evocar o «terreno» onde surgiram o Santo Ofício e a Companhia de Jesus em Portugal – o semeado por Camões, Gil Vicente, Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro, João de Barros, Pedro Nunes, Fernão Mendes Pinto, Garcia de Orta, Frei Bartolomeu dos Mártires, Francisco Sanches, Damião de Góis e André de Resende, para só referir alguns dos mais ilustres –, pergunta: «Pois não está tudo isto indicando que a actividade mental portuguesa, deixada ao natural curso, nos levaria a emparceirar dignamente com os espíritos que nos séculos XVII e XVIII levantaram lá fora bem alto o pensamento, revolucionando a ciência e preparando a emancipação do homem!?» Acrescenta que a Inquisição e o Jesuitismo, «os dois famosos Policiários da Contra-Reforma, caíram como duas massas brutais para esmagar o Pensamento da Península, para dirigir a mentalidade e a educação das juventudes muito a seu talante, canalizando as consciências e as especulações dos espíritos ao sabor dos seus métodos, encerrando essas mentalidades nos círculos de ferro da emaranhada casuística e da teologia. O poder temporal pusera-se ao serviço de Roma; o poder episcopal abdicara do seu antigo poder rendendo-se à omnipotência do Concílio de Trento.» Conclui: «É inútil, antes pernicioso, comprimir a Ideia: a máquina compressora rebentará nas próprias mãos do compressor. Foi o que tragicamente sucedeu.»

Porquê estas longas transcrições, à guisa de introdução à obra do historiador Federico Palomo sobre a Contra-Reforma? Em primeiro lugar, porque não se descortina nela, ao contrário do que nos ficou sobre a matéria assinado por António José Saraiva, a preocupação de entender Portugal no contexto da Europa da segunda metade do século XVI e de todo o século XVII, ainda que a ampla bibliografia citada pelo espanhol a pudesse fazer prever; depois, porque lhe falta o grão de pimenta que tempera o texto de Silva Bastos, em favor de um cinzentismo talvez muito apreciado em certos meios universitários, mas incompatível com um exigente conceito de historiador-cidadão.

Debruçando-se com escrupulosa minúcia sobre as bases da confessionalização católica em Portugal (instrumentos do poder régio e seus agentes, instituições, dispositivos de controlo e de coerção do poder eclesiástico); sobre as formas e instrumentos de difusão do discurso religioso (palavras e imagens, práticas apostólicas, confissão); sobre as devoções e práticas religiosas, a santidade, as heterodoxias, a questão da família e da comunidade, Federico Palomo realizou sem dúvida obra meritória, honestíssima pela qualidade da investigação, digna de ser lida com a maior atenção por todos os que se interessam pelo tema que estudou. A chamada de atenção para a instrumentalização política que D. João IV fez da religião, nomeadamente da devoção à Imaculada Conceição; ou para o papel do cardeal D. Henrique, irmão de D. João III, o criador da Inquisição portuguesa, na interferência da Coroa na governação das ordens religiosas; ou, ainda, para a enorme relevância dos púlpitos nas crises de 1580 e de 1640, «mobilizando argumentos de carácter político-religioso e desempenhando uma função de grande peso, quer na oposição quer na legitimação das dinastias filipina e brigantina», são decerto passagens importantes deste livro, a par de um sem-número de pormenores muito significativos acerca da aliança táctica e estratégica do poder temporal e do chamado «poder espiritual» para, em conjunto, edificarem um espaço económico, político e ideológico que, passe o anacronismo histórico, ultrapassou a simples ditadura para roçar aquilo que hoje não hesitaríamos em classificar como totalitarismo. Totalitarismo rudemente cimentado em Portugal pelos «missionários do interior» no âmbito individual e familiar e alargado a outras paragens com a apregoada ambição de «dilatar a Fé e o Império». Que musculado catolicismo, o inspirado – pelo Espírito Santo? – aos conciliares de Trento!

Federico Palomo, «A Contra-Reforma em Portugal – 1540-1700», Livros Horizonte, 2006, 142 páginas