Histórias da Resistência (Católicos e Estado Novo)

António Rego Chaves

No prefácio que redigiu para esta obra de João Miguel Almeida, salienta Fernando Rosas que «a oposição dos católicos ao Estado Novo não só se desenvolve à revelia e contra as posições da Igreja Católica face ao regime, como é uma oposição, também, à cumplicidade e apoio da hierarquia eclesiástica à ditadura». Depois de deixar bem claro que «só com a aproximação da crise final do regime a hierarquia da Igreja começa a tomar as suas distâncias com vista a evitar – e evitou – o erro trágico da queda da monarquia: o do morrer abraçada aos vencidos», salienta o profundo impacte que o concílio Vaticano II teve «nos meios católicos portugueses e na base da sua Igreja». E conclui, com um implacável sentido das realidades, que a hierarquia católica soube, em vésperas do 25 de Abril, «sair da fotografia final da agonia do velho regime, escolher o cavalo certo na disputa pela hegemonia durante o período revolucionário, sobreviver incólume e sem ter de dar explicações a ninguém acerca de um passado político menos consentâneo com a caridade e o amor ao próximo».

João Miguel Almeida centra-se no período que medeia entre 1958 (data das chamadas «eleições presidenciais» em que foi candidato Humberto Delgado, «o general sem medo» que seria assassinado pela PIDE em 1965) e 1974, o ano da queda de Marcelo Caetano. Era então já longo o rol dos clérigos que se tinham oposto à opressão do «Estado Novo». Citemos três: o Padre Abel Varzim, incansável paladino da causa operária, vítima de perseguição por parte dos poderes político e eclesiástico e afastado em 1948 de todos os cargos que ocupava na Acção Católica; D. António Ferreira Gomes, o Bispo do Porto que, em 1958, numa carta a Salazar que lhe valeria dez anos de exílio, ousara criticar o regime corporativo, denunciar a miséria em que vivia o povo e reivindicar para os católicos o direito de divulgar a doutrina social cristã; o Padre Felicidade Alves, removido da paróquia de Belém em 1968, depois suspenso ‘a divinis’ e excomungado por ter condenado a Guerra Colonial, a PIDE e a censura, advogando uma «revolução político-social».

Do outro lado da barricada estiveram D. Manuel Gonçalves Cerejeira e D. António Ribeiro. O primeiro, umas vezes descarado outras vezes dissimulado adepto da ditadura salazarista-caetanista e primando pelo silêncio em relação à pertinaz violação dos direitos humanos de que era complacente espectador; o segundo, que o substituiria em 1971, apostando num «milagroso» equilíbrio entre católicos tradicionalistas e «progressistas» e preparando a adaptação do ancilosado episcopado nacional aos tempos democráticos. Mas não só de sacerdotes vive a Igreja, ou melhor, os sacerdotes são apenas uma ínfima parte da Igreja, maioritariamente formada por leigos. E, valha a verdade, foram muitos milhares os leigos que, aqui e ali apoiados por eclesiásticos, deram sinais de que talvez estivesse em curso uma genuína «revolução» religiosa.

Recorda o autor: «De 1958 a 1962 o país vive no sobressalto de uma possível queda da ditadura: a revolta da Sé, em Março de 1959; a ‘Abrilada’ do general Botelho Moniz, em 1961; o golpe de Beja, na passagem de 1961 para 1962.» (…) «A imagem de um regime contestado internamente e fragilizado nas relações externas é acentuada, em 1961, pelo desvio do paquete Santa Maria por Henrique Galvão e pela invasão e anexação de Goa pela União Indiana.»

A candidatura de Humberto Delgado, combatida pelo bafiento cerejeirismo militante do jornal «Novidades», é apoiada por notórios católicos «progressistas» como João Bénard da Costa, Manuela Silva, Nuno Bragança, M. S. Lourenço, Manuel de Lucena, Pedro Tamen, Nuno Portas, Mário Murteira, Adérito Sedas Nunes, Francisco Pereira de Moura, João Salgueiro, João Gomes, Manuel Serra, Alçada Baptista, Lino Neto ou Nuno Teotónio Pereira. O carácter anticristão do regime tornara-se escandaloso e todos os que viviam intensamente a mensagem de Jesus não podiam senão repudiar a «colagem» de Salazar aos Evangelhos. Era ainda o fim do tempo de Pio XII, mas João XXIII, Paulo VI e o Vaticano II (1962-1965) decerto lhes teriam dado a sua «bênção».

Muitos foram os católicos «progressistas» que não se quedaram pela divulgação de palavras faladas ou escritas: passaram aos actos, estiveram na Revolta da Sé (1959), em várias «eleições legislativas» integrados nas listas da oposição, no golpe de Beja (1962), nas crises académicas dos anos sessenta, nas vigílias da Igreja de São Domingos (1969) e da Capela do Rato (1973) contra Guerra Colonial, na solidariedade para com os prisioneiros políticos, na «ala liberal» da Assembleia Nacional durante o consulado de Marcelo Caetano – ainda que esta «experiência» de «transformação por dentro» do regime salazarento se tenha saldado por um previsível e rotundo malogro.

Caracterizando de um ponto de vista sociológico a oposição católica ao Estado Novo, escreve o autor: «É um movimento que cresce a partir de Lisboa, Porto e Coimbra. Às gerações marcadas pelo fim da II Guerra Mundial e pela contestação do Decreto-Lei 40 900 [que, em 1956, viera formalizar todas as restrições às Associações de Estudantes que os universitários tinham contestado na década de 50] sucedem os jovens confrontados com a guerra e despertos para a intervenção cívica pelas crises académicas de 62, 65 e 69. Os oposicionistas católicos possuem uma formação religiosa variada, dentro ou fora da Acção Católica Portuguesa, e um elevado nível cultural adquirido na universidade e/ou em centros mais informais de socialização e discussão. A maior parte deles situa-se numa ‘classe média intelectualizada’ na qual se evidenciam os profissionais liberais, funcionários públicos e quadros técnicos.»

Acrescente-se que, enquanto uns aderiram à Liga de Unidade e Acção Revolucionária (LUAR) e optaram pela luta armada, outros participaram em vários ataques, atentados e assaltos das Brigadas Revolucionárias (PRP/BR). Tudo histórias da Resistência…

João Miguel Almeida, «A Oposição Católica ao Estado Novo – 1958-1974», Edições Nelson de Matos, 2008, 315 páginas