A lição de Amílcar Cabral

António Rego Chaves

Em Fevereiro de 1975 – quantos anos, já! – desembarcava eu no aeroporto de Bissalanca, tendo como única bagagem umas dezenas de livros e muitos, muitos sonhos. Auxiliado por companheiros de boa vontade, entre os quais o então jovem poeta e jornalista Eduardo Guerra Carneiro, ia fazer um jornal, o «Nô Pintcha» («Em Frente») que, segundo presumo, ainda hoje existe e continua a ser publicado três vezes por semana. À Guiné unem-me, pois, demasiadas laços, tantos que não sei se poderia escrever sem emoção quaisquer palavras sobre Amílcar Cabral, o grande político africano cujo pensamento e cuja acção nunca deixaram de me fascinar. Não terá sido por acaso que, em matéria de ideologia da esquerda africana, muitos o consideram hoje tão ou mais importante quanto o ganês Kwame Nkrumah ou o congolês Patrice Lumumba. Mas vamos aos factos. Vamos ao livro que aqui nos traz, sem esquecermos a excelente recolha em dois volumes das obras de Amílcar Cabral editada por François Maspero, logo no início de 1975, que inclui, entre muitos outros textos, uma veemente homenagem a Nkrumah, «revolucionário exemplar» e um elogio do anti-imperialismo de Lenine, ensaios que nos ajudam, como poucos, a definir as opções do eminente intelectual que lutou até à morte contra o colonialismo português.

António E. Duarte Silva redigiu a biografia do antigo líder do PAIGC. Anote-se e louve-se a minúcia da apresentação. Mas como justificar esta débil conclusão, em menos de três linhas, sobretudo da parte de quem insere na bibliografia o livro de José Pedro Castanheira «Quem mandou matar Amílcar Cabral?»: «Na noite de 20 de Janeiro de 1973, vítima de complexa e obscura conspiração, foi assassinado por camaradas guineenses.» Apontados os autores materiais do crime, assunto encerrado? E, quanto às instâncias coloniais portuguesas, nem uma só palavra a dizer?

Adiante. Declarava Amílcar Cabral, em 1960, num texto publicado em Londres, com prefácio do historiador Basil Davidson: «Onze milhões de africanos estão submetidos à dominação colonial portuguesa. (…) «A população africana destas colónias foi reduzida à escravatura por um pequeno país, o mais atrasado da Europa.» (…) «Depois do tráfico de escravos, a conquista pelas armas e as guerras coloniais, veio a destruição completa das estruturas económicas e sociais da sociedade africana. Seguiu-se a fase da ocupação europeia e o povoamento crescente destes territórios pelos europeus. As terras e os haveres dos africanos foram pilhados, os portugueses impuseram a ‘taxa de soberania’ e tornaram obrigatória a cultura de certos géneros; instituíram o trabalho forçado e organizaram a deportação dos trabalhadores africanos; passaram a controlar totalmente a vida colectiva e privada do povo, utilizando ora a persuasão ora a violência.» (…) «Os recursos humanos e naturais destas colónias são explorados e hipotecados pelo seu mais baixo valor. Os colonialistas espezinham os princípios cristãos ao desprezarem a pessoa humana e fazem tudo o que podem para os verdadeiros efeitos da sua ‘missão civilizadora’.» E citava Henrique Galvão, futuro assaltante do Santa Maria e grande conhecedor de África: «Só os mortos escapam ao trabalho forçado.»

Nove anos depois, num «Seminário de Quadros» do PAIGC, a linguagem do líder tornava-se ainda mais dura: «Com a nossa resistência armada e correndo riscos da nossa vida cada dia, negámos a situação de portugueses de segunda classe, se não de terceira ou de cachorros de portugueses que os estrangeiros colonialistas portugueses nos queriam impor.»

Em Janeiro de 1973, poucos dias antes de ser assassinado, escrevia, referindo-se aos portugueses, o que por muitos viria a ser considerado o seu «testamento político»: «Cometerão ainda mais crimes contra as nossas populações, farão ainda mais tentativas e manobras para tentarem destruir o nosso Partido e a luta. Farão certamente vários actos de agressão desavergonhada contra os países vizinhos. Mas tudo em vão. Porque nenhum crime, nenhuma força, nenhuma manobra ou demagogia dos criminosos agressores colonialistas portugueses será capaz de parar a marcha da História, a marcha irreversível do nosso povo africano da Guiné e Cabo Verde para a independência, a paz e o progresso verdadeiro a que tem direito.» Quase acertou em tudo…

Mas talvez as ideias fundamentais desta antologia sejam as incluídas num documento intitulado «A Arma da Teoria», datado de 1966, verdadeiro programa político a aplicar, no mínimo, a grande parte dos países africanos e asiáticos que, na época, não se encontravam suficientemente desenvolvidos para gerar uma burguesia nacional apta a assumir a governação: «Para manter o poder que a libertação nacional põe nas suas mãos, a pequena burguesia só tem um caminho: deixar agir livremente as suas tendências naturais de aburguesamento, permitir o desenvolvimento duma burguesia burocrática e de intermediários do ciclo das mercadorias, transformar-se em pseudoburguesia nacional, isto é, negar a revolução e enfeudar-se necessariamente ao capital imperialista. Ora isso corresponde à situação neocolonial, quer dizer, à traição dos objectivos da libertação nacional. Para não trair esses objectivos, a pequena burguesia só tem um caminho: reforçar a sua consciência revolucionária, repudiar as tentações de aburguesamento e as solicitações, naturais da sua mentalidade de classe, identificar-se com as classes trabalhadoras, não se opor ao desenvolvimento normal do processo da revolução. Isso significa que, para desempenhar cabalmente o papel que lhe cabe na luta de libertação nacional, a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de suicidar-se como classe para ressuscitar na condição de trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as aspirações mais profundas do povo a que pertence. Essa alternativa – trair a revolução ou suicidar-se como classe – constitui o dilema da pequena burguesia no quadro geral da luta de libertação nacional.»

Os que mataram e os que mandaram matar Amílcar Cabral sabiam bem quanto valiam o pensamento e a acção do intelectual que liderou a luta armada de libertação nacional na Guiné-Bissau…

Amílcar Cabral, «Documentário», Edições Cotovia, 2008, 239 páginas