Uma lição de cepticismo (David Hume)

António Rego Chaves

O escocês David Hume (1711-1776) conduziu o empirismo inglês de Francis Bacon, Thomas Hobbes, John Locke e George Berkeley ao cepticismo: para ele, a experiência não pode fundamentar a plena validade de qualquer conhecimento, apenas o torna mais «provável» ou menos «provável». Além do «Tratado da Natureza Humana», sua obra fundamental, escreveu «Ensaios Morais e Políticos», «Investigação sobre o Entendimento Humano», «História de Inglaterra», «História Natural da Religião» e «Diálogos sobre a Religião Natural». Este último texto apenas seria publicado três anos depois da morte do filósofo e mais de vinte depois de redigido pela primeira vez, devido aos previsíveis dissabores que a sua divulgação em vida lhe poderia causar, por obra e graça das sempre atentas e vigilantes autoridades eclesiásticas.

David Hume considera que as proposições verdadeiras sobre factos se fundamentam na experiência, que as proposições verdadeiras sobre relações se fundamentam na não-contradição e que não há outras proposições verdadeiras possíveis. Portanto, todos os livros que contenham enunciados que não sejam raciocínios demonstrativos (como os próprios da lógica ou da matemática), ou «raciocínios prováveis» (como os assentes na experiência), deveriam ser «lançados às chamas». Entenda-se que, neste contexto, tal seria o destino das obras de teologia ou metafísica, pois as «verdades religiosas» não podem ser racionalmente demonstradas – tal como não pode ser racionalmente demonstrada a sua negação. Nada obstaria, porém, que todas fossem consideradas apenas no âmbito da probabilidade ou da plausibilidade, pois o filósofo repudiava qualquer espécie de dogmatismo, fosse ele científico, teísta, deísta, agnóstico ou ateu.

Os «Diálogos» constituem ainda hoje uma consistente crítica às razões físicas, morais e metafísicas para sustentar a ideia da imortalidade da alma, reduzindo esta crença ao estatuto de matéria de fé. Também as tentativas de demonstrar a existência de Deus – considerando que a existência não é um predicado – são submetidas no texto a uma análise implacável, pois o autor sustenta, na linha do mais rigoroso empirismo, ser tudo aquilo que concebemos como existente também concebível como inexistente e que, por conseguinte, «não existe um único ser cuja existência esteja demonstrada».

O cerne da questão levantada pelos «Diálogos» é, sem dúvida, o deísmo, que nos derradeiros anos do século XVII e durante grande parte do século XVIII monopolizou as atenções de um número considerável dos intelectuais alemães, franceses e ingleses que se ocuparam da metafísica. Entre estes últimos – inspirados por pensadores como John Toland («O Cristianismo não é Misterioso», 1696), Matthew Tindall («A Religião é tão Velha como a Criação», 1704) e Anthony Collins («Discurso sobre o Livre-Pensamento», 1713), que exaltavam o racional em detrimento do sobrenatural –, muitos limitaram-se a reconhecer a existência de Deus, opondo-se simultaneamente ao ateísmo e ao teísmo. Na verdade, se bem que considerassem Deus como causa primeira do mundo, recusavam os dogmas cristãos; por outro lado, não concebiam qualquer interferência do «primeiro motor» nos assuntos humanos, negando, portanto, a Providência divina, cuja existência tornaria, a seu ver, impossível justificar o mal.

Estão em causa nestes «Diálogos» os fundamentos racionais da religião, sendo os interlocutores um deísta (Cleantes), um cristão tradicionalista (Demea) e um céptico (Fílon). Este último é, talvez, aquele que mais fielmente reflecte os pontos de vista de Hume, embora algumas das posições sustentadas pelo primeiro e, até, pelo segundo, pudessem ser subscritas pelo filósofo. Examinadas – e rebatidas – as provas da existência de Deus, os interlocutores debruçam-se sobre o problema do mal, sob a égide do célebre Paradoxo de Epicuro: «Ou Deus quer eliminar o mal e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou pode e quer. Se quer e não pode, é fraco – o que não se pode aplicar a Deus. Se pode e não quer, é malévolo – o que é igualmente estranho à natureza de Deus. Se não pode nem quer, é simultaneamente fraco e malévolo e portanto não é um deus. Se pode e quer, que é a única coisa adequada a um deus, qual é então a origem do mal? Ou por que razão não o elimina Deus?» Instalado nestes termos o cepticismo, dificilmente se conceberia, depois, uma aceitação das tradicionais posições cristãs acerca da conciliação da existência do Deus todo-poderoso e absolutamente bom com a omnipresença do mal individual e colectivo. Fílon é bem claro a esse respeito, mas afirma também que o cepticismo pode revelar-se um primeiro passo essencial no sentido de um pensador se transformar em verdadeiro cristão. A crença religiosa e a crítica céptica não seriam, assim, antagónicas; muito pelo contrário, talvez não houvesse autênticos seguidores da Bíblia senão entre os indivíduos que nunca renunciam a interrogar-se acerca dos fundamentos da sua fé e questionam as «certezas» transmitidas pela Revelação e pela Tradição.

Reconhecerá Paul Ricoeur, em 1986, no ensaio «O mal: um desafio à filosofia e à teologia», depois de evocar a perenidade do Livro de Job na literatura mundial, que mesmo para ele, assumido cristão empenhado numa luta ética e política contra a violência exercida pelos homens sobre os homens, «o enigma do verdadeiro sofrimento, do irredutível sofrimento», estava longe de ter sido ainda posto a nu. Oito anos mais tarde, reafirmará que, de uma perspectiva religiosa, seja ela judaica ou cristã, o mal continua a ser um «mistério»: «já não se trata de o explicar, quer dizer, de o racionalizar, mas de viver na mais extrema tensão o escândalo do mal e o reconhecimento por tudo o que nos surge como uma dádiva.» Será que, mesmo sem lograrem esclarecer o «mistério» do seu próprio sofrimento e do sofrimento dos seus semelhantes, «homens de boa vontade», repudiando toda e qualquer contabilidade das recompensas e dos castigos divinos, conseguirão, tal como o lastimável Job, amar a Deus «por nada», isto é, sem um único móbil para o amar?

David Hume, «Diálogos sobre a Religião Natural», Edições 70, 2005, 158 páginas