Mario Vargas Llosa («La verdad de las mentiras»)

Uma apologia da literatura

António Rego Chaves

Há muitos, muitos anos, deparei com uma belíssima – e aliás bem barata – edição da Jean-Jacques Pauvert cujo título me compeliu de imediato à aquisição: «La Littérature à l’estomac», texto divulgado pela primeira vez em 1949. O seu autor, Julien Gracq, por mim então desconhecido, recusaria em 1951 o Goncourt pela obra «Le Rivage des Syrtes» e consagrava este ensaio a zurzir o mercantilismo, os compadrios, as capelinhas literárias, as tácticas e estratégias habituais na «República das Letras» francesa. «Devorei» o panfleto, depois superiormente traduzido para a nossa língua por Ernesto Sampaio, decerto tanto com o auxílio da cabeça como do estômago. Porque era também o estômago que estava em causa, o do autor, o do leitor, o do tradutor, dado que para todos eles a poesia, a ficção, a filosofia, ou se entende e sente nas entranhas ou talvez não mereça, sequer, um olhar de esguelha. Pois a glória de Mallarmé, como sugeria o autor, não fora a de ter tido «cinquenta leitores que se deixaram morrer por ele»?

Percorrendo o ensaio que abre e dá título a este livro de Vargas Llosa – «La verdad de las mentiras» – não pude deixar de recordar Julien Gracq. Não que o peruano recupere a virulência da denúncia do francês, já lá vai mais de meio século, mas sem dúvida sempre muito actual: sobretudo porque, tal como ele, coloca a literatura (a verdadeira literatura, entenda-se, não esses milhões de resmas de papel cheias de tagarelices que, um pouco por todo o mundo, se vão escrevendo, produzindo e comercializando com a única e por vezes descarada finalidade de as vender o mais que se possa e dilatar «mais-valias») no terreno em que ela deve ser colocada por vocação e também por direito: o da tematização da existência. Isto, que fique claro, sem qualquer complacência em relação à cinzenta ameaça que há decénios paira sobre nós, ou seja, a da imposição de uma «literatura de professores».

O Nobel de 2010 lembra que os inquisidores espanhóis proibiram que se publicassem ou se importassem romances nas colónias hispano-americanas com o argumento de que esses livros «mentirosos» poderiam revelar-se prejudiciais para a saúde espiritual dos índios e que, devido a esse facto, durante trezentos anos os hispano-americanos só puderam ler ficções de contrabando. O Santo Ofício teria «boas» razões para tal proibição? Llosa não diz que não, até concede que as ficções têm «propensões sediciosas».

E porquê? Porque os homens, afirma Llosa, não estão contentes com a sua sorte e quase todos quiseram ou querem viver uma vida diferente daquela que de facto tiveram ou têm. Seria para aplacar esse desejo de mudança que nasceram as ficções. «Elas escrevem-se e lêem-se para que os seres humanos tenham as vidas que não se resignam a não ter. No embrião de qualquer romance bole uma inconformidade, vibra um desejo insatisfeito.»

Explicita: «Não se escrevem romances para contar a vida, mas para a transformar, acrescentando-lhe algo». (…) «Sonho lúcido, fantasia de carne, a ficção completa-nos, a nós, seres mutilados a quem foi imposta a atroz dicotomia de ter uma só vida e os apetites e as fantasias de desejar mil.» (…) «Sair de si próprio, ser outro, ainda que ilusoriamente, é uma maneira de ser menos escravo e de correr os riscos da liberdade.»

No ensaio que encerra o volume, intitulado «La literatura y la vida», Vargas Llosa insiste nestas concepções: «A literatura não diz nada aos seres humanos satisfeitos com a sua sorte, a quem agrada a vida tal como a vivem. Ela é o alimento de espíritos indóceis e propagadora de inconformismo, um refúgio para aquele a quem sobra ou falta algo, na vida, para não ser infeliz, para não se sentir incompleto, sem realizar as suas aspirações. Sair a cavalgar junto do esquálido Rocinante e do seu desgovernado ginete pelos descampados de La Mancha, percorrer os mares atrás da baleia branca com o capitão Ahab, engolirmos o arsénico com Emma Bovary ou transformarmo-nos num insecto com Gregor Samsa é uma maneira astuta que inventámos com o fim de nos desagravarmos a nós próprios das ofensas e imposições desta vida injusta que nos obriga a ser sempre os mesmos, quando quereríamos ser muitos, tantos quantos seriam necessários para aplacar os ardentes desejos de que estamos possuídos.»

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Títulos das obras recenseadas neste livro por Vargas Llosa, seguidos da data da primeira edição e do nome do autor: «O Coração das Trevas», 1902 (Joseph Conrad); «A Morte em Veneza», 1912 (Thomas Mann); «Dublinenses», 1914 (James Joyce); «Manhattan Transfer», 1925 (John dos Passos); «Mrs. Dalloway», 1925 (Virginia Woolf); «O Grande Gatsby», 1925 (Francis Scott Fitzgerald); «O Lobo das Estepes», 1927 (Hermann Hesse»); Nadja, 1928 (André Breton); «Santuário», 1931 (William Faulkner); «Admirável Mundo Novo», 1932 (Aldous Huxley); «A Condição Humana», 1933 (André Malraux); «Trópico de Câncer», 1934 (Henry Miller); «Sete Contos Góticos», 1934 (Isak Dinesen, aliás Karen Blixen); «Auto de Fé», 1936 (Elias Canetti); «O Zero e o Infinito», 1940 (Arthur Koestler); «O Poder e a Glória», 1940 (Graham Greene); «O Fim da Aventura», 1951 (Graham Greene); «O Estrangeiro», 1942 (Albert Camus); «A Quinta dos Animais», 1945 (George Orwell); «A Romana», 1947 (Alberto Moravia); «O Reino deste Mundo», 1949 (Alejo Carpentier); «O Velho e o Mar», 1952 (Ernest Hemingway); «Paris é uma Festa», 1964 (Ernest Hemingway); «A Leste do Paraíso», 1952 (John Steinbeck); «Não sou Stiller», 1954 (Max Frisch); «Lolita», 1955 (Vladimir Nabokov); «O Leopardo», 1957 (Giuseppe Tomasi di Lampedusa); «O Doutor Jivago», 1957 (Boris Pasternak); «O Tambor», 1959 (Günter Grass); «A Casa das Belas Adormecidas», 1961 (Yasunari Kawabata); «O Caderno Dourado», 1962 (Doris Lessing); «Um Dia na Vida de Ivan Denisovich», 1962 (Alexandr Solzhenitsin); «Opiniões de um Palhaço», 1963 (Heinrich Böll); «Herzog», 1964 (Saul Bellow); «Afirma Pereira», 1994 (Antonio Tabucchi).

Mario Vargas Llosa, «La verdad de las mentiras», Alfaguara, 2003, 413 páginas