Regresso ao nariz de Cleópatra (D. Sebastião)

António Rego Chaves

Dizia Pascal que, se o nariz de Cleópatra fosse mais curto, toda a face da Terra teria mudado. O espanhol Antonio Villacorta Baños-Garcia pouco mais nos ensina nesta sua biografia de D. Sebastião, só que no caso em apreço o alvo da sua atenção não é a dimensão do nariz do monarca português, mas a patologia ligada ao seu esperma.

Nas duas dezenas de páginas que consagra aos problemas psico-fisiológicos de D. Sebastião, Banõs-Garcia interroga-se sobre a castidade e a misoginia do soberano, «estimulada pela educação excessivamente religiosa recebida», sobre o seu «fluxum seminis», sobre a sua aversão a olhar para qualquer mulher e a sua rejeição do matrimónio, sobre «poluções nocturnas» e «uretrites crónicas», sobre hipóteses de impotência, de incapacidade de procriação e de escrófulas, de espermatorreia e de «síndroma transitória pré-puberal ou adiposogenital», sobre a «disfunção sexual» de que teria sido vítima o neto de D. João III e Catarina de Áustria, filho de Joana de Áustria e do príncipe João Manuel. Fazendo-se eco da versão segundo a qual o assunto era discutido na época «em todas as tabernas de Lisboa», conclui que a doença de D. Sebastião era crónica e o acompanhou durante toda a sua curta vida. Perguntamos: será de atribuir a tal factor um papel histórico na obsessão do jovem D. Sebastião pela função das praças africanas na sua estratégia imperial, no anti-castelhanismo que evidenciou perante as ambições anexionistas do tio Filipe II, no seu misticismo, nos seus sonhos guerreiros, na sua ânsia de glória e de dilatar a fé católica por todo o mundo, na sua desastrosa «aventura» de 1578 em Alcácer Quibir?

Como recorda Veríssimo Serrão, desde Oliveira Martins, que viu em D. Sebastião «o Nun’Álvares da perdição», a Carlos Malheiro Dias, que o exaltou como símbolo do herói antigo, a António Sérgio, que lhe chamou «imbecil, fanfarrão, estúpido, pedaço de asno, monstro e desbocado», a Queiroz Veloso, que procurou explicar as suas opções estratégicas à luz do meio político, social e religioso onde viveu, o seu curto reinado deu origem a numerosas tomadas de posição de carácter mais emotivo que racional, «na elevação ao infinito das qualidades da personagem ou na sua destruição pura e simples, como se de uma figura histórica não se houvera tratado».

Oliveira Marques salienta que a «jornada de África» de D. Sebastião «tem sido interpretada como parte de um plano político-estratégico, com aspectos internacionais e nacionais, visando o controlo do Mediterrâneo ocidental para a Cristandade. Com a conquista de Marrocos pelos portugueses, pôr-se-ia fim à pirataria muçulmana, ao tempo muito activa, abrir-se-ia, no extremo ocidente, uma nova frente de luta contra o Islão, ajudar-se-ia a política papal e veneziana de combate aos turcos – o que iria beneficiar, em última análise, os interesses portugueses no Índico –, evitar-se-ia um possível alastramento de conquistas espanholas na área marroquina, etc., etc. Seria, no fundo, uma reedição da política de D. Afonso V, cem anos atrás.» O historiador, porém, duvida de que todos estes complexos objectivos estratégicos, ou mesmo alguns deles, «estivessem alguma vez na mente do irresponsável monarca», embora pudessem ter estado presentes no espírito dos seus mais lúcidos conselheiros.

Joaquim Romero de Magalhães pergunta: «Acaso estaria D. Sebastião convencido de que os turcos poderiam conseguir estabelecer bases de pirataria em Marrocos, pondo, assim, em perigo as costas do Algarve e de Portugal e afectando o novo espaço imperial em emergência?» E sublinha: «Filipe II, decerto mais descansado após a vitória de Lepanto, em 1571, tinha uma visão de geopolítica bem mais arguta do que a do sobrinho (em especial pelo que tocava ao Mediterrâneo), e não estava convicto da necessidade da expedição. Sem êxito, tenta arredá-lo do intento.»

Borges de Macedo assevera que «a preocupação diplomática de D. Sebastião e dos seus conselheiros era garantir a independência do seu país, ameaçado pela hegemonia espanhola. Para isso, conceberam uma estratégia específica e não arbitrária, posta em prática entre 1568 e 1574. Ora, o grande obstáculo, não desejado, que se lhe levantou, foi o avanço turco no Norte de África. Em consequência dele, o planeamento diplomático a médio prazo – como hoje se diria –, face à política espanhola, teve de ser modificado: as exigências do Norte de África tinham-se, assim, tornado prioritárias» em detrimento das relações europeias (envolvendo a Espanha, a Inglaterra, a França, o Império Alemão). Na verdade, em 1574, com a subida à chefia do Estado turco de Murad III, verifica-se um período de intensa actividade ofensiva deste Império, tanto no Mediterrâneo como na Europa Central. É verdade que esta tendência terminaria em 1579; mas como poderiam D. Sebastião e os seus conselheiros «adivinhar», com uma antecedência de cinco anos, que tal sucederia?

Quanto ao papel de Filipe II na consumação da catástrofe de Alcácer Quibir, deixemos de vez as divagações de Baños-Garcia acerca das desditas seminais de D. Sebastião e das imaculadas intenções do «seu» angélico monarca Filipe II e releiamos a lúcida mensagem envenenada de Queiroz Veloso: «Esforçara-se o rei católico por dissuadir o sobrinho dessa rematada loucura: mostrá-lo a Portugal e ao mundo fora até uma das suas mais vivas preocupações. Para quê empenhar novo esforço, provavelmente ineficaz, pois há muito escrevera a D. João da Silva (o embaixador do país vizinho) classificando o procedimento de D. Sebastião de ‘más obstinación que otra cosa’? Se o sobrinho, nessa vertiginosa corrida para o abismo, encontrasse a perdição, só podia queixar-se de si mesmo. Ele não daria mais um passo para o isentar dos perigos que voluntariamente procurava: e não lhe enviou as almejadas galés. Começava a sorrir-lhe a ideia duma possível e talvez próxima herança.» Não se enganava: as Cortes de Tomar jurariam em 1581 Filipe II rei de Portugal e de todos os seus vastos senhorios.

Antonio Villacorta Baños-Garcia, «D. Sebastião, Rei de Portugal», A Esfera dos Livros, 2006, 389 páginas