Salazar visto de Espanha (Hipólito de la Torre Gómez)

António Rego Chaves

Escrever sobre o Estado Novo, ainda hoje, é tarefa ingrata, porque se torna impossível agradar a todos. Mas o historiador Hipólito de la Torre Gómez talvez tenha conseguido em parte este objectivo: agradar a todos ou quase todos… os espanhóis que o lerem. Quanto a traduzir para português este texto sobre o tema, a editora terá boas razões: comerciais em primeiro lugar, depois políticas, finalmente «científicas»? Escolha quem souber.

Não se discute o mérito do autor, especialista de História Contemporânea de Portugal. Imagina-se, sim, a recepção que teria em Espanha, hoje, uma «História do Franquismo» escrita por um português. Decerto que filas intermináveis de madrilenos ou barceloneses se concentrariam às portas da «Casa del Libro», na esperança de adquirir um exemplar do texto que lhes explicaria, finalmente, o que o seu país tinha vivido desde a Guerra Civil até à morte do «generalíssimo». Estamos a imaginar a cena, não estamos?

Pois venda-se ou não se venda o livro de Hipólito de la Torre Gómez, trata-se de um texto sério, sereno, digno de apreço. Não porque nos venha dizer algo de novo ou inesperado, mas porque põe os pontos em alguns «is» que, para numerosos leitores, necessitarão deles. Refiro-me sobretudo aos que ainda não estavam vivos ou eram crianças em 25 de Abril de 1974 – porque os outros viram ou sabem, em princípio, o que é necessário ver ou saber.

Destacaríamos três pontos fundamentais, não porque constituam novidade para os que minimamente se debruçaram sobre os temas, mas porque ainda hoje constituem, entre salazaristas e anti-salazaristas, tópicos de discussão:

1) Foi uma longa série de artigos, publicada desde finais de 1927 no jornal católico «Novidades», criticando as contas públicas do Estado, que esteve na origem da tomada do Poder por Salazar. Tornou-se assim evidente que o futuro ditador, longe de desinteressado de governar, preparou metodicamente o acesso a São Bento. «Tal como Oliveira Martins ou João Franco, Salazar entendia que a recuperação material do País era indissociável da superação política do liberalismo. Ao exigir, como condição para aceitar a pasta das Finanças, poderes excepcionais no controlo dos orçamentos de diversos ministérios, Salazar estava a anunciar, logo à partida e da forma mais eloquente, a sua vontade de poderio»;

2) Todos os indicadores macroeconómicos mostram que o período da Segunda Guerra Mundial foi de inegável prosperidade para Portugal. Ou seja: mesmo que nada se saiba acerca das intenções do ditador, a verdade é que a «neutralidade» durante a Segunda Guerra Mundial foi altamente lucrativa para o País: verificou-se «um impressionante fluxo de divisas, que tornou amplamente excedentária a balança de pagamentos e incrementou de forma espectacular as reservas do Banco de Portugal». A um tal incremento não foram estranhos os fornecimentos de volfrâmio à Alemanha nazi pelo Estado Novo;

3) «Nos últimos anos da Administração Eisenhower, a atitude de Washington tinha-se voltado para uma posição de apoio ao imparável processo de descolonização, que a chegada de Kennedy à Presidência dos EUA veio reforçar, não tanto na essência, como na utilização de procedimentos diplomáticos mais contundentes». (…) «Kennedy estava disposto a apoiar o movimento de emancipação colonial, entre outras razões porque considerava que essa era a melhor forma de evitar a propagação do comunismo na Ásia e na África» (…) «A decidida política anticolonialista de Kennedy fez com que Lisboa perdesse definitivamente o apoio da principal potência mundial.» (…) «Portugal encontrou apoios alternativos, de grande importância, em França e, sobretudo, na República Federal da Alemanha, que viria converter-se na grande potência fornecedora de créditos e de material de guerra». (…) A Guerra Colonial «representou um esforço humano enorme (800 mil recrutados entre 1961 e 1974; 6340 mortos, 112 205 feridos ou incapacitados; 49 422 combatentes em 1961, 149 090 em 1973) e financeiro (40 por cento do orçamento do Estado consumido em gastos com a Defesa).

Repita-se: tudo isto é desde há muito bem conhecido dos especialistas e não oferece, hoje, contestação. Mas a questão é que se continua, não poucas vezes, a falar do «desinteresse» do anacoreta de Santa Comba pelo Poder, após a queda da Primeira República; ou das dificuldades financeiras suportadas pelo Estado Novo na sequência da Segunda Guerra Mundial; ou, no que à Guerra Colonial se refere, de um «orgulhosamente sós» que nunca existiu, apesar do abandono da «causa» pelos Estados Unidos, ao mesmo tempo que se disfarçam os seus trágicos custos em vidas humanas e para o desenvolvimento do País. Será bom que certos demagogos de hoje, desejosos de denegrir tudo o que é actual, deixem de esgrimir argumentos «históricos» que nunca o foram, pura e simplesmente porque não se fundamentam senão na mitologia salazarenta – e não em factos históricos.

Será também interessante arquivar o que o autor, bom conhecedor da matéria em causa, nos diz sobre a ingerência do Estado Novo na Guerra Civil de Espanha e do auxílio que prestou aos golpistas: «O Portugal de Salazar não apenas forneceu ao bando [sic] nacionalista um número apreciável, embora pouco conhecido, de combatentes voluntários (entre um mínimo de 2500 e um máximo de 8000), como também, o que era mais importante, uma retaguarda territorial de elevado valor logístico – tráfico de armas, abastecimento de alimentos, entrega de refugiados, emissões propagandísticas – sobretudo nos primeiros seis meses da guerra. No entanto, a principal ajuda de Salazar concretizou-se no plano político-diplomático.» Estes, sim, são mesmo factos históricos…

Hipólito de la Torre Gómez, «O Estado Novo de Salazar», Texto Editores, 2010, 111 páginas