Wilde, Marx, Lautréamont

António Rego Chaves

Quem foi Oscar Wilde? Decerto que a maioria dos seus admiradores nos dirá que o grande escritor irlandês (1854-1900) nos deixou obras como «O Retrato de Dorian Gray», «De Profundis» e «Balada do Cárcere de Reading». Se lhes perguntarmos algo sobre as suas opiniões políticas e se não se tiverem dado ao trabalho de se debruçar sobre uma das suas biografias, como a assinada por Richard Ellmann (quase 700 páginas), decerto terão dificuldade em satisfazer com algum pormenor a nossa curiosidade. No entanto, encontra-se ao alcance de todos, por um preço quase ridículo, o esclarecimento cabal da questão. Título: «O Espírito Humano no Socialismo». Data da primeira edição: 1891. Autor: Oscar Wilde, imagine-se!

Repito, «imagine-se!» Porque julgo que uns bons 90 por cento dos leitores de Oscar Wilde serão incapazes de explanar o conteúdo do pensamento político deste poeta, romancista, teatrólogo e ensaísta, bem mais conhecido pelas excentricidades, a homossexualidade e o estetismo do que pelas corajosas tomadas de posição contra o puritanismo e a hipocrisia da sociedade vitoriana – que o condenaria a dois anos de trabalhos forçados por «indecência» e «sodomia» –, e contra a propriedade privada. Um «dandy» contra a propriedade privada? Tal e qual, sem tirar nem pôr. Ou antes, sem nada tirar e muito acrescentando ao longo deste sintético e brilhante texto.

Que quer dizer Oscar Wilde quando faz a apologia do socialismo? Basicamente, que urge tornar a pobreza impossível, fazendo cada um dos membros da sociedade participar na prosperidade geral. Convertida a propriedade privada em riqueza pública, substituída a concorrência pela cooperação, estaria garantido o bem-estar material de todos os membros da comunidade. Mas seria necessário algo mais, o individualismo. Que a todas as pessoas fosse dada a possibilidade que até hoje só tem sido concedida a algumas de ser poeta, filósofo, cientista, artesão, guardador de ovelhas – enfim, tudo o que lhes desse na real gana ser. Sobretudo que todos pudessem tornar-se Darwin, Keats, Flaubert, Shakespeare, Espinosa, Wagner. Ou nada disso, mas que cada um decidisse do seu destino com inteira liberdade, para que conhecesse plenamente a alegria de viver. Porque «a verdadeira perfeição do homem não reside no que ele tem, mas no que ele é». (…) «“Conhece-te a ti mesmo”, estava escrito à porta do mundo antigo. À porta do mundo novo estará escrito: “Sê tu mesmo”. O ensinamento de Cristo ao homem era simplesmente: “Sê tu mesmo”. Esse era o segredo de Cristo.»

Não se julgue, porém, que Oscar Wilde previa que fossem os mais miseráveis a conduzir a luta pela sua própria emancipação. Escreve: «A pobreza e miséria são tão completamente deprimentes, exercem um efeito tão estupidificante sobre a natureza humana, que nenhuma classe social tem realmente consciência da sua própria desgraça. É preciso que outros lho expliquem, e muitas vezes não se lhes dá crédito. O que os grandes patrões dizem contra os agitadores é uma incontestável verdade. Os agitadores (…) semeiam as sementes do descontentamento. É por isso que os agitadores são tão absolutamente necessários.» (…) «Para o pensador, o acontecimento mais trágico da Revolução Francesa não é o suplício de Maria Antonieta, condenada à morte por ser rainha; é a revolta dos camponeses miseráveis da Vendeia, dispostos a morrer pela causa monstruosa do feudalismo.»

No socialismo, os homens deixarão de ser escravos de outros homens, mas as máquinas serão escravas de todos os homens e libertá-los-ão do «trabalho baixo, nojento, destituído de interesse» que torna a cultura intelectual e a contemplação quase impossíveis. «Será isto uma utopia? Um mapa do mundo que não assinale a Utopia não é sequer digno de um olhar, por omitir a única região à qual a humanidade aporta sempre. E quando a humanidade a ela aporta, avista mais longe, e, apercebendo-se de uma região melhor, volta a fazer-se à vela. O progresso é a realização das utopias.»

Abro um livro que Oscar Wilde nunca poderia ter lido, porque foi publicado pela primeira vez muitos anos depois da sua morte, e releio um sublinhado: «Quanto mais o trabalhador se dedica ao trabalho (…) tanto mais pobre se torna a sua vida interior e tanto menos dono é de si mesmo.» Outro: «O trabalho humano (…) produz inteligência, mas também estupidez e cretinice para os trabalhadores.» E ainda outro: «Todos os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples alienação de todos eles, pelo sentido do ter. O ser humano tinha de ser reduzido a esta pobreza absoluta a fim de poder dar à luz toda sua riqueza interior.» Estas frases encontram-se nos célebres «Manuscritos Económico-Filosóficos» do jovem Marx e datam de 1844, mas só foram tornadas públicas entre 1927 e 1932.

Se consulto «A Ideologia Alemã» (1845-1846) – obra de Marx e Engels só editada em 1933 –, as «coincidências» ampliam-se: releva-se que a ideologia da classe dominante reina até sobre os espíritos das classes dominadas; afirma-se que o «trabalho», actividade que é imposta aos indivíduos por determinadas condições e circunstâncias concretas de ordem económica, política ou outra, se opõe à «manifestação de si», actividade idealmente livre do homem; advoga-se a «abolição do trabalho» e sustenta-se que nenhuma actividade deverá ser imposta ao homem. Em suma: uma vez substituído o trabalho pela «manifestação de si», cada homem poderia, se assim o entendesse, caçar de manhã, pescar à tarde, praticar a pastorícia ao fim do dia, ser crítico literário depois de jantar, sem nunca se tornar apenas caçador, pescador, pastor ou crítico literário; nenhuma actividade lhe viria a ser imposta, mas todos os géneros de actividade seriam as manifestações das necessidades, dos interesses, dos gostos e de faculdades altamente desenvolvidas.

Evoco Lautréamont (1846-1870): «A poesia deve ser feita por todos.» As semelhanças entre os pensamentos do irlandês, do alemão e do francês não passarão de meras «coincidências»?

Oscar Wilde, «O Espírito Humano no Socialismo», Edições Dinossauro, 2005, 63 páginas