Certezas e incertezas (Dossier de «Le Magazine Littéraire» sobre a dúvida)

António Rego Chaves

Ao apresentar este muito francês dossier sobre «A Dúvida», que organizou, refere Laurent Nunez que «a convicção, tal como a certeza, não é senão abandono e preguiça». Cita Kant: «Mede-se a inteligência de um indivíduo pela quantidade de incertezas que é capaz de suportar» e conclui: «A glória do homem é reflectir; nenhum acto é mais violento, dado que ele implica, em primeiro lugar, uma negação, seja pondo em causa certezas adquiridas, seja criticando sistemas filosóficos anteriores. Pensar é duvidar.»

A atenção do leitor que já alguma vez se debruçou sobre o tema não pode ignorar Montaigne, Descartes, Pascal e Valéry, ainda que os cépticos da Antiguidade, os paradoxos, o barroco, Flaubert, Anatole France, Musil, Giorgio Manganelli, o budismo zen, Lacan, a metalepse e a literatura francesa contemporânea sejam também objecto de estudo pelos articulistas – o que infelizmente não sucede com alguns «indiscutíveis» como Locke, Hume ou Unamuno. Mas essa é ainda – será que para sempre? – a estafada questão de a França se considerar como o «umbigo do mundo», do qual nunca fizeram parte, apesar de tão próximos, os britânicos ou os ibéricos.

Paul Valéry – é ainda Laurent Nunez quem o salienta – considerava que existem frases belas de mais para que possam ser inteiramente verdadeiras. Aplicou a numerosos «produtos literários» este juízo, mas a nenhum com tanta insistência como aos «Pensamentos». Ouçamos o ensaísta: «Alguns fragmentos desta apologia pareciam-lhe obras de falsário: descreviam a aflição [détresse] daquele que os redigia e isso era impossível – não se podia ao mesmo tempo estar apavorado [éffrayé] com a possibilidade de um mundo sem Deus e calmamente sentado à mesa descrevendo esse pavor. Assim, quando Pascal escrevia: ‘O silêncio eterno dos espaços infinitos apavora-me’, Valéry negava a veracidade da frase…»

Será que Pascal inventava – ou recordava – a sua angústia, para que a nossa viesse a surgir? «Tal como fazia em relação a Stendhal ou Verlaine, Valéry censurava Pascal por representar um papel, por compor o seu gesto e a sua frase; e, com esta dupla composição, por trair o seu ideal da filosofia, uma espécie de pensamento puro, brutal, primitivo – e quase não linguístico.» Palavras de Valéry: «Os famosos ‘Pensamentos’ não são tanto honestos pensamentos-para-si, como argumentos, armas, venenos, estupefacientes para outrem. A sua forma é por vezes tão conseguida, tão rebuscada que marca uma intenção de falsificar o verdadeiro ‘Pensamento’, de o tornar mais imponente, mais apavorante – do que qualquer outro Pensamento.» (…) «Dizer: o silêncio eterno, etc., é enunciar claramente: quero espantar-vos com a minha profundidade e maravilhar-vos com o meu estilo.»

Poder-se-ia «psicanalisar» Valéry para se saber o que o levou a atacar tão constantemente os «Pensamentos», talvez mergulhando nos seus imensos «Cahiers», escritos ao longo de mais de 40 anos; mas é Pascal quem está agora em causa, não o crítico de «Variété». Como assinala Laurent Nunez, Maurice Blanchot inverte o raciocínio de Valéry e «faz do estilo da Pascal, não a prova da sua insinceridade, mas a causa do seu pavor. Corolário, a sinceridade de Pascal volta a surgir nessa vaidade da escrita que o autor [dos ‘Pensamentos’] nem sequer tentou dissimular.» Basta ler o fragmento 150, sobre a vaidade, da edição de Brunschvicg para dar razão a Blanchot.

Philippe Sellier, reputado especialista de Pascal (é da sua responsabilidade a nova edição, em 2010, dos «Pensamentos») recorda que a figura do filósofo enquanto «céptico atormentado», um «Hamlet do catolicismo» na visão de Barbey d’Aurevilly, é produto do Romantismo, para nos dar a sua interpretação da obra-prima de Pascal: uma apologia do catolicismo que assenta em modelos como o Livro de Job, Santo Agostinho ou a «Apologia de Raymond Sebonde» dos «Ensaios» de Montaigne. Em conclusão: «O que o século XIX tomou por dúvidas (…) não surge hoje senão como uma estratégia parcial que ocupa uma etapa provisória no caminho proposto ao leitor. (…) Desde a abertura do projecto de apologia devia tomar lugar uma crítica pré-kantiana do papel da razão na procura religiosa: ‘Submissão e uso da razão em que consiste o verdadeiro cristianismo’». Para falar claro, Pascal visava «converter» os seus leitores – e nem todos os meios de que usou nos «Pensamentos» teriam sido os intelectualmente mais honestos.

De Descartes, diz Maxime Rovere: «A dúvida cartesiana é uma varinha de vedor destinada a regressar ao lugar onde se joga a aquiescência do espírito. O que se pode ganhar neste caso não é apenas fundamentar a verdade das ciências, provar a existência de Deus ou propor aos filósofos um novo critério de verdade. Em última análise, Descartes, nem mais nem menos, está à procura de confiança. Trata-se de compreender por que motivo e como o espírito concede a sua confiança, seja nas questões teóricas (é o que está em jogo nas ‘Meditações Metafísicas’ em 1641), seja nos problemas práticos (é o objecto da moral apresentado, em 1649, em ‘As Paixões da Alma’».) (…) «Descartes vai progressivamente fazer da dúvida uma arma de destruição maciça, que não deixa subsistir qualquer resíduo de incerteza. É a isso que se chama a dúvida metódica.»

Descartes e Pascal, dois farsantes? É imperativo duvidar. Quanto ao autor dos «Ensaios», «apanhado pelo coração de uma época que mergulhara nas certezas fanáticas», apenas «sabe que nada sabe». Uma sua frase, transcrita por Joseph Macé-Scaron em «A alegre ignorância de Montaigne», sintetiza numa fórmula tão brutal quanto esclarecedora o que pensava das humanas certezas e incertezas: «Aconteceu às pessoas verdadeiramente sábias o que acontece às espigas de trigo: vão-se elevando e levantando, com a cabeça erguida e orgulhosa, enquanto estão vazias; mas, quando estão cheias e inchadas de grãos, na sua maturidade, começam a humilhar-se e a baixar os cornos.»

Le Magazine Littéraire, «Le Doute», Julho-Agosto de 2010, 106 páginas