O arrebitado nariz de Leonor (Marquesa de Alorna)

António Rego Chaves

Era altiva, senhora de seu arrebitado nariz e assaz ilustrada, «nasceu em 1750 e morreu em 1839, a Sr.ª D. Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre, condessa de Oeynhausen, 4.ª marquesa de Alorna, 7.ª condessa de Assumar, Dama da Ordem da Cruz Estrelada em Alemanha, Dona de Honor, e Dama da Real Ordem de Santa Isabel de Portugal» (é da autoria de Camilo Castelo Branco o texto que transcrevemos entre aspas).

A «varonil senhora» – Camilo, mais uma vez, dixit, decerto caracterizando o espírito da Marquesa – «contava apenas oito anos quando foi reclusa no Mosteiro de Chelas, como presa do Estado, com sua mãe, e irmã. A malograda tentativa de regicídio na noite de 3 de Setembro de 1758 tornara suspeito o Marquês D. João de Almeida, que, em vésperas de sair do reino como embaixador à Corte de Luís XV, foi aferrolhado nos cárceres da Junqueira; e sua família, excepto o filho D. Pedro, que entrava no quarto ano de idade, entrou no convento sob vigilantíssima espionagem.»

Tal «vigilantíssima espionagem» não impediu a futura Marquesa de Alorna de ler e reler em Chelas, durante 18 anos, tudo o que em matéria de cultura estrangeira poderia ser lido na época, incluindo os heréticos enciclopedistas franceses que os plebeus portugueses, por imposição censória, nunca eram autorizados a ler, tal como não a impediu de contactar em pessoa com a fina flor dos poetas e letrados da época, incluindo António Dinis da Cruz e Silva, Correia Garção, Filinto Elísio e outros visitantes da grade do convento. Além disso, aprendeu latim, francês, inglês, italiano e árabe. Convenhamos que não desperdiçou o seu tempo de forçada clausura...

Na morte da Marquesa, em 1839, Alexandre Herculano escreveria: «Àquela mulher extraordinária é que eu devi incitamentos e protecção literária, quando, ainda no verdor dos anos, dava os primeiros passos na estrada das letras. (…) «Dos seus contemporâneos, quem conheceu tão bem não só a literatura grega e romana, com que igualava os melhores, mas a moderna, de quase todas as nações da Europa, no que nenhum dos nossos portugueses a igualou? Como Madame de Staël, ela fazia voltar a atenção da mocidade para a Arte da Alemanha, a qual veio dar nova vida à Arte meridional. (…) Foi por isto e pelo seu profundo engenho que com sobeja razão se lhe atribuiu o nome de Staël portuguesa.»

Outra faceta da brilhante intelectual (é de estranhar a insistência de Vanda Anastácio em referir-se-lhe, não como «escritora», mas como «mulher escritora», dado que não se conhece um único caso de «homem escritora») foi assim referida por Hernâni Cidade: «Alcipe era por de mais dinâmica para se contentar da actividade literária. Quis exercê-la na política, e os ‘Inéditos’ que dela publicou o autor destas linhas, na Colecção Clássicos Sá da Costa, inserem as cartas referentes aos generais vendeianos que ela ocultou em seu palácio, e dirigidas ao príncipe-regente D. João e ao cardeal patriarca, procurando aliciá-los à conspiração que andavam tecendo pela Europa contra Napoleão. Noutra tentativa, parece tê-la surpreendido a polícia de Pina Manique, que a leva a exilar-se em Londres.»

Diz a ensaísta que, «se é um facto que Alcipe leu [em Chelas] autores como Diderot, Voltaire, Rousseau e outros filósofos críticos do monaquismo e/ou da religião constituída, também é um facto que não os cita especificamente em matéria religiosa, fosse porque não se identificava com as suas posições, fosse para poupar-se a eventuais censuras dos seus destinatários.»

E acrescenta: «Não somos capazes, nesta fase da investigação, de caracterizar claramente a posição de D. Leonor face à religião neste período. Da sua correspondência é apenas possível concluir que se considera católica e crente, e que consegue manter a fé e a assiduidade das práticas religiosas mesmo no seio de uma comunidade de freiras que considera pouco preocupadas com a virtude ou com a salvação de suas almas e ignorantes dos princípios básicos do Catolicismo. É possível que possa ter conhecido fontes contemporâneas adversas ao monaquismo, mas, em grande medida, as censuras que faz à vida conventual enraízam-se na sua própria experiência e reflectem o desconforto de uma situação que não havia escolhido e que sentia como uma imposição.»

Algumas páginas a seguir, porém, afirma Vanda Anastácio: «Alcipe interessa-se, sobretudo, pela Filosofia, pela Política e pelas Ciências da Natureza e elege como leituras privilegiadas Rousseau e Voltaire, cujas obras (…) se encontravam proscritas pelos editais. Como ela própria confessa: ‘Não gosto senão dos livros que não posso ler, por regímen’.» Não obstante, garante-nos a autora, «D. Leonor permanecerá profundamente crente e adepta do Catolicismo e procurará conciliar os princípios da religião que professa com as novas descobertas científicas e com a Filosofia.» Conciliar, sobretudo depois do terramoto de 1755, a intervenção da Providência divina com o deísmo de Voltaire? Eis uma acrobacia mental que, tanto quanto julgamos saber, nunca ninguém conseguiu levar a cabo, nem mesmo a insigne Alcipe lusitana.

Dois reparos: primeiro, este livro, ao contrário do que o título pode indiciar, não é uma biografia da Marquesa de Alorna, mas uma compilação de textos esparsos, por vezes um tanto repetitivos, tornados públicos pela autora entre 2004 e 2008; depois, falta a tais trabalhos uma consistente integração política, que qualquer estudo das épocas do Marquês de Pombal e da «Viradeira» lhe poderia ter facultado. A verdade é que, se a História de Portugal não pode dispensar a História da Cultura Portuguesa, também a História da Cultura Portuguesa não pode dispensar a História de Portugal…

Vanda Anastácio, «A Marquesa de Alorna (1750-1839)», Prefácio, 2009, 203 páginas