Teixeira de Pascoaes («Livro de Memórias»)

Viagem ao museu da memória

Autobiografia de Teixeira de Pascoaes: como sempre, um texto

nos antípodas da fútil, almofadada e digestiva literatura «light»

António Rego Chaves

O Livro de Memórias de Teixeira de Pascoaes, publicado pela primeira vez em 1928, reporta-se quase exclusivamente à infância e adolescência do autor. É, pois, um menino «cabisbaixo, sisudo, com uns olhos tristes e espantados» que emerge destas páginas impregnadas de melancolia e de solidão do homem de 50 anos que as escreveu, dir-se-ia que com a morte na alma.

Mas quem foi, afinal, Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, aliás, Teixeira de Pascoaes? Respostas não faltam: «não só o nosso maior romântico, mas, porventura, o nosso único romântico completo», (…) «um poeta não dividido, um poeta não integrado» (Padre Manuel Antunes); um «teólogo agnóstico, herético e profundamente religioso» (Sant’Ana Dionísio); alguém cuja obra literária «veicula um pensamento de cariz simultaneamente filosófico, religioso e místico» (Jorge Coutinho).

Avancemos um pouco mais. Miguel Torga liga «medularmente» a Portugal o poeta de Marânus: «Teixeira de Pascoaes é o trágico aedo da nossa condição de eternos exilados da realidade, de encobertos no descoberto, de perseguidores de miragens.» Há, de facto, algo de indisfarçavelmente português nas entranhas deste Livro de Memórias: talvez, desde o início, o que Joaquim, com apenas sete anos, sugere ou desvenda quando é brutalmente arrancado aos seus e ao espaço encantado do lar criado em São João de Gatão, à beira de Amarante, por seus pais, e caminha para a escola como para o patíbulo, indefeso, a fim de aprender a integrar-se num mundo ignoto. Só mais tarde compreenderá que começou então a ser transformado em «animal domesticado», até concluir, em Coimbra, a licenciatura em Direito. Falar de espanto, de mal-estar, de inadaptação, de mágoa do pequeno Joaquim é pouco. Outro brutal desenraizamento será vivido de forma ainda mais violenta pelo adolescente – salienta António Cândido Franco em prefácio – no Liceu de Amarante, que se perfilará qual «autêntica colónia penal» onde o jovem é condenado a «trabalhos forçados» – como ressalta da leitura de Uma Fábula, obra publicada postumamente, em 1978, e escrita nos últimos anos vividos por Pascoaes.

No Livro de Memórias, a imaginação evocadora «dissipa as trevas do tempo e ressuscita os mortos», as pessoas amadas e perdidas pelo poeta. «Conviver com os mortos, divagar entre ruínas, é tudo para mim. Divago e reconstruo», escreve. E acrescenta: «Convivo e reconstruo, na solidão.» Está visto, estamos nos antípodas da fútil, almofadada e digestiva literatura light. Mais um exemplo: «A memória é um museu, uma variedade imensa de estátuas e quadros; uns, animados pela dor, outros, pela alegria. E todos surgem ao luar que encanta a noite do Passado. Surgem, velados de uma ternura dolorida, que é uma névoa de lágrimas não choradas.» Outro ainda: «Os mortos que eu amei vivem. Sou o pão da sua mesa e o lume que os aquece, no sepulcro. Vivem em mim.» Um último grito: «Os fantasmas é que vivem na verdade, e não há poeta ou doido que lhes fuja. Entre eles e um poeta a diferença é imperceptível. Os poetas e os espectros erram, abandonados, na solidão nocturna, e já ninguém acredita na sua existência.»

Névoas, brumas, fantasmas – será esse o caminho para a verdadeira realidade? A memória mergulha no tempo percorrido e emerge dele, num vai-e-vem contínuo que nunca é mecânico ou lúdico, mas voluntário e dilacerante, tragédia. Há que vencer «o Marão do esquecimento», se queremos ressuscitar os nossos mortos. «Eu fui sempre um sítio ermo», confessa-nos o autor. Mas recorda o seu íntimo «museu da memória, um Louvre de fantasmas, um Louvre imenso, onde cabe Paris e há paisagens e paisagens, no seu tamanho natural, e uma tela que representa o céu todo estrelado».

Uma indelével e incurável melancolia percorre cada recordação: «A minha infância foi um idílio com as coisas e as pessoas: um idílio misterioso e triste. É que a infância do nosso ser humano é já uma saudade, a velhice do nosso ser divino.» «Jogos, medos, comoções», tudo está bem vivo nestas páginas sobre as quais sempre pairam as trevas nascidas da morte dos seres amados. E afectos, profundos e incontidos afectos. Leia-se lentamente, soletrando: «Estas figuras de avós que nos adoram, prestes a partir quando nós mal acabamos de chegar, que só conhecemos na velhice, reduzidas a uma ternura pelos netos e a uns fios brancos de cabelo, são figuras sagradas. É de joelhos, rezando, como Fra Angelico pintava, que as retratamos na memória.» Assim se vence «o mar do esquecimento, o mar tenebroso dos lusíadas».

E a saudade? «A saudade é a nossa alma e a nossa Musa. A saudade de Deus é que é Deus; a saudade da mulher amada é que é a mulher da nossa paixão, e a saudade da Pátria é que é, realmente, a nossa Pátria. Adoramos a ausência e desprezamos a presença.» Quem poderia ter escrito tão deslumbrantes «barbaridades» senão Teixeira de Pascoaes, dolorido apóstolo da Saudade, inconformado peregrino da dúvida metafísica, amador sem amada, português sem Portugal?

Teixeira de Pascoaes, «Livro de Memórias», Assírio & Alvim, 2001, 153 páginas

Publicado no «Diário de Notícias» em 3.11.2001