Da provocação ao delírio (Rui Ramos)

António Rego Chaves

Rui Ramos tem demonstrado ser um historiador muito preocupado em contrariar diversas ideias correntes sobre determinados factos históricos. Se alguma hesitação tivéssemos acerca da justeza de tal apreciação, este livro, significativamente intitulado «Outra Opinião», retirar-nos-ia qualquer dúvida quanto à sua forma de se posicionar perante os temas que aborda.

Quer nos fale da monarquia constitucional, da I República, de Salazar, do 25 de Abril, de Spínola, do antifascismo, de Álvaro Cunhal, de Mário Soares ou de Sá Carneiro, a tónica é sempre a mesma: afirmar algo de contrário àquilo que quase todos consideram adquirido ou consensual, não apoiado numa sólida articulação dos dados disponíveis, mas em arreigadas convicções pessoais. O resultado será talvez reconfortante para os que partilham concepções idênticas às suas, mas é decepcionante para quem esperaria ver demonstrado o que é determinado por opções ideológicas.

Assim, sustentar que «o confronto entre liberais e miguelistas tem uma dimensão fundamentalmente religiosa», que o regime nascido em 1910 e que durou até 1926, «pelos padrões do princípio do século XXI, não foi democrático nem pluralista», ou que «Portugal passou o século XX a pagar a factura do 5 de Outubro» é, no mínimo, demasiado subjectivo para se poder falar de um interpretação rigorosa do que ocorreu nas épocas em causa. Pouco importará se Rui Ramos «gosta» mais dos miguelistas ou dos liberais, dos monárquicos ou dos republicanos, dos salazaristas ou dos antifascistas. A verdade é que nos brinda com «pérolas» como estas: «A ‘democracia’ [as aspas são do autor] contra a qual Salazar fez doutrina na década de 1930 não significava um estado de direito e representativo, como hoje, mas o domínio exclusivista e sectário da esquerda republicana.» (…) «Salazar chegou ao governo depois de cem anos de hegemonia política das esquerdas, primeiro em versão liberal e depois republicana.» (…) «Em 1945, na hora da derrota do fascismo, as esquerdas exigiram eleições em Portugal. Salazar fez eleições. Nem ele nem as oposições estavam de boa fé.» Todas estas arbitrariedades falam por si e dispensam quaisquer comentários de ordem «científica»: situam-se à margem da História.

Quanto ao «colonialismo» português (termo que o autor também grafa entre aspas, vá-se lá saber por que tineta), eis como Rui Ramos, em duas linhas, tenta «branquear» o Estado Novo e salpicar de lama um eminente antifascista: «A devoção de Salazar pelo ultramar jamais chegou ao nível da do general Norton de Matos, o chefe da oposição em 1949.» Haveria que sublinhar, como fez Oliveira Marques em «A Primeira República Portuguesa», que: a) «Norton de Matos travou, tanto quanto pôde, o recrutamento de trabalho africano»; b) «fez suspender o código de trabalho indígena de 1911 que, em muitos aspectos, se mostrava pior que os anteriores. Proibiu os castigos corporais, publicou uma copiosa série de portarias concedendo protecção oficial ao Negro, lutou contra o alcoolismo entre os indígenas, instituiu comissões para assistência local, etc.»; c) «tentou igualmente, em parte conseguindo, o repatriamento total dos trabalhadores angolanos em S. Tomé. Ao mesmo tempo, ia gizando (e aos poucos executando) um plano de conversão dos Negros em agricultores permanentes, garantindo-lhes a posse plena das suas terras mediante um cadastro oficial da propriedade indígena, tanto particular quanto comunitária.» A comparação com Salazar constitui, pois, um injustificável insulto à memória do prestigiado republicano e Grão-mestre da Maçonaria.

Não menos «interessante» é a forma como Rui Ramos se refere à independência da Guiné, Angola e Moçambique. Eis as suas palavras: «Só à esquerda seria possível imaginar as ditaduras sanguinárias e corruptas do PAIGC ou da FRELIMO como uma ‘libertação’, ou chamar ‘descolonização’ à ocupação de Angola por um exército expedicionário cubano.» Digamos que, em matéria de imparcialidade, ficamos conversados, sobretudo quando se parece querer passar em claro todas as atrocidades cometidas por portugueses, não apenas durante a Guerra Colonial, mas ao longo de séculos, na Guiné, Angola e Moçambique.

Classificando o dia 25 de Abril de 1974 como «carnaval esquerdista do Largo do Carmo», dizendo que «Salazar, ao contrário do general Franco em Espanha, fez sempre eleições» ou não disfarçando o seu entusiasmo perante a contra-revolução de Julho e Agosto de 1975, o autor renuncia às suas funções de historiador tanto quanto possível isento e adopta o tom do propagandista. Está no seu pleno direito, desde que não venda gato por lebre e se assuma como aquilo que de facto se revela – um panfletista.

Nos textos consagrados a Álvaro Cunhal, Mário Soares e Sá Carneiro, Rui Ramos liberta, se possível ainda com maior à-vontade, os seus fantasmas, ao evidenciar um anticomunismo militante, uma radical repulsa em relação a todos os partidos de esquerda, o seu acrítico «culto» da mascote do PPD.

Certas afirmações do sarcástico historiador situam-se, no entanto, como algumas das já referidas, não apenas no campo da demagogia ou da provocação, como no âmbito do delírio reaccionário. Atente-se nas seguintes: «Os portugueses já se habituaram às lições de patriotismo da Presidência da República. Devem talvez começar a preparar-se para o momento em que algum comissário de Bruxelas dê ordens para serem patriotas e escreverem ‘Os Lusíadas’ outra vez. De preferência, com um prefácio anti-americano.» (…) «O anti-europeísmo parolo viveu sempre de pesadas indigestões de patriotismo, gemendo pela soberania nacional e pelos coitadinhos da pesca e das hortas.» Falar, com o arrogante desprezo de quem não conhece privações e pobreza, dos «coitadinhos da pesca e das hortas», ou seja, dos «trabalhadores do mar» (Victor Hugo) e dos camponeses, impedidos de pescar e de cultivar a terra devido aos ditames da chamada União Europeia, é uma afronta inadmissível na boca de alguém que se reclama da democracia. Fiquemos por aqui, pois não são necessárias mais palavras do que as transcritas para catalogar uma obra e um homem.

Rui Ramos, «Outra Opinião – Ensaios de História», O Independente, 2004, 233 páginas