A voz perplexa de George Steiner

António Rego Chaves

Os estudiosos portugueses de George Steiner – sem dúvida um dos grandes críticos literários e ensaístas do século XX, nascido em Paris de pais judeus austríacos em 1929, poliglota, diplomado em ciências físicas e matemáticas nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, professor em Cambridge e Genebra, editorialista da revista «The Economist», colaborador permanente da «New Yorker» –, decerto conhecem já a série de quatro entrevistas que concedeu ao ensaísta e docente universitário iraniano Ramin Jahanbegloo em 1990. A actual reedição destinar-se-á, sobretudo, a quem pretenda conhecer melhor o exímio «mestre de leitura» ou «carteiro» dos autores clássicos e deve, por isso, ser saudada, embora com as reservas expressas no final deste texto.

No prefácio, assinala Jahanbegloo (desde finais de Abril por motivos políticos encarcerado em Teerão) que «a teologia aparece na consciência radical de Steiner como uma questão incontornável. Toda a reflexão sobre o destino trágico do homem é, portanto, acompanhada no seu pensamento por uma interrogação sobre a dimensão transcendente de uma obra capaz de verificar a possibilidade de uma desgraça do homem na História e de, ao mesmo tempo, iluminar o caminho que permite superá-la». Ciente de que o «vírus do absoluto» percorre todo o discurso do interlocutor, o entrevistador interroga-o sobre a sua concepção de Deus. Resposta frontal: «Recuso-me a discutir consigo essa questão, compete-lhe a si descobri-la nos meus livros.»

Sucede que, à data em que o diálogo ocorreu, embora já fosse conhecido o ensaio «Presenças Reais» (1989), ainda não eram públicas algumas das mais importantes ideias do autor sobre o tema em questão, que só viriam a surgir em «Errata – Revisões de uma Vida» (1997). Aí, nas derradeiras páginas, encontramos a sintetizadas as inquietações metafísicas de Steiner, como todos nós um «hóspede da vida», depois de este se perguntar: «Se Deus existe, porque é que tolera os terrores e injustiças flagrantes da condição humana?» Serão desfeitas todas as dúvidas? Decerto que não. Apenas um mar de justificadas perplexidades nos espera, ainda que «ouvidos» Sócrates, Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Pascal, Newton, Kant, Dante, Tolstoi, Dostoievski, Descartes, Einstein, Wittgenstein, Bach, Beethoven, Miguel Ângelo. Considera o autor: «Descontando Shakespeare, a estética e o discurso filosófico têm desde sempre professado, alegorizado, investigado e narrado, de modos múltiplos, uma ‘espera de Godot’.» (…) «Aquilo em que acredito é o seguinte: se a questão da existência ou não existência de Deus cair na banalidade, se se apagar da nossa consciência pública e privada como algo de um passado remoto, o pensamento e a totalidade das artes tal como as conhecemos hoje alterar-se-ão profundamente.»

Ora, sendo «o projecto da demonstração racional e argumentativa da existência de Deus uma perda de tempo», «só podemos ter uma resposta honesta: o ‘não sei’, ‘não sei se sim ou se não’ do agnóstico. Este agnosticismo, fracturado por impulsos de preces angustiadas, de apelos involuntários a ‘Deus’ em momentos de terror ou sofrimento, é omnipresente no Ocidente pós-darwiniano, pós-nietzschiano e pós-kantiano. Conscientemente ou inconscientemente, o agnosticismo é a igreja oficial da modernidade. À sua luz soturna, o ente racional e culto conduz a sua vida imanente.»

George Steiner continua: «Tenho a certeza de que se ‘Deus’ existe (…) não pode ter nada em comum (…) com as imagens sugeridas pelas mentes humanas, por mais sagazes que sejam. Isto é, por mais abstractas ou metafisicamente penetrantes que sejam, as especulações ou gramáticas dos homens e mulheres que as articularam continuam a ser irremediavelmente antropomórficas. São fatalmente limitadas pelas sinapses cerebrais, pelos meios metafóricos e analógicos da nossa psique. Pairam, com maior ou menor sofisticação, na aura desse majestoso e barbudo pater-famílias (estranhamente parecido com Karl Marx) que foi imaginado no tecto da Capela Sistina para o comum dos mortais.» (…) «Daí a minha tentação de aderir à sugestão avançada por certas metafísicas e ‘teologias negativas’. Parece-me que só nos podemos dirigir interiormente a Deus como aquele que é totalmente Outro, de quem não existem modos de definição ou tradução para nós». Seja-nos permitido recordar que o grande teólogo jesuíta Karl Rahner (1904-1984), num texto luminoso significativamente intitulado «Sobre a Inefabilidade Deus», falava da «inquietante suspensão entre o ‘sim’ e o ‘não’ como o verdadeiro e único ponto firme do nosso conhecimento». Será que tal fórmula não seria subscrita por Steiner, sempre atento ao peso sem fim da ausência e do silêncio de Deus, «ao horrível sentido de um vazio concreto»? Ou será que, como afirma, Deus ainda não existe e que «só existirá, ou, mais precisamente, só se tornará manifesto à percepção humana quando houver um amor imenso e muito mais excessivo do que o ódio»? Tal interrogação, sobre a qual ainda paira o severo luto de Adorno pela morte da poesia após o «sol negro» de Auschwitz, sabe-se lá se apaziguado pela aurora de Paul Celan, inventor de uma «língua a norte do futuro», talvez alicerce a meditação de Steiner sobre o judaísmo e suas «supremas heresias» (cristianismo e marxismo), Atenas e Jerusalém, Hegel e Kierkegaard, Tolstoi e Dostoievski, temas maiores aqui apenas aflorados. Seja como for, escutamos neste livro uma das vozes mais originais, mais fulgurantes – e também mais perplexas – deste nosso tempo à deriva e «sem música na alma».

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Uma nota final, infelizmente indeclinável: o número e a gravidade das gralhas – chamemos-lhes assim, por gentileza – desta segunda edição constituem indesculpável afronta ao entrevistado, ao entrevistador e ao tradutor, Miguel Serras Pereira. Fiquemos por aqui, na esperança de que o menosprezado leitor as possa detectar sem perder o fio da leitura. Haja Deus!

Ramin Jahanbegloo, «Quatro Entrevistas com George Steiner», Fenda, 2.ª edição, 2006, 191 páginas