O nosso «Reino cadaveroso» no século XVIII (Hernâni Cidade)

António Rego Chaves

Hernâni Cidade (1887-1975), nome maior da nossa cultura do século XX e antigo professor das Faculdades de Letras do Porto e de Lisboa, foi bem conhecido como autor de importantes estudos sobre Camões, o Padre António Vieira ou Antero de Quental, bem como das «Lições de Cultura e Literatura Portuguesas» e deste «Ensaio sobre a Crise Mental do Século XVIII» (1929). Em boa hora a Editorial Presença tomou a iniciativa de o reeditar, embora com título diferente, que se pretendeu mais adequado ao actual uso erudito e popular do termo «mental». Esperemos que o exemplo não frutifique e que não ouçamos a partir de agora chamar por outro nome a medieva «Lei Mental» do rei D. Duarte ou o «Brasil Mental» de Sampaio Bruno...

Hernâni Cidade debruça-se sobre o «Século das Luzes», passada que foi o «época de ouro» dos filósofos conimbricenses, tenazes ruminantes do Peripato e incorrigíveis repetidores da Escolástica – e daí impermeáveis, quer à herança do Renascimento, quer às lições de um Pierre de La Ramée, de um Bacon ou de um Descartes, quer aos progressos das ciências da natureza e das ciências exactas. Duas personalidades se agigantam na tentativa de aproximação mental de Portugal à Europa: o Padre Luís António Verney (1713-1792), com o «Verdadeiro Método de Estudar» (1746-1747), e o médico António Ribeiro Sanches (1699-1782) que, com as «Cartas sobre a Educação da Mocidade Nobre» (1760), dará origem à organização do Colégio dos Nobres e, com o «Método para Aprender a Estudar a Medicina» (1763), em muito determinará as directrizes do Estatuto da Faculdade de Medicina pombalino.

O Padre Barbadinho, pseudónimo de Verney, deposita no pântano cultural, científico e religioso onde vegetávamos uma verdadeira bomba de relógio que o Marquês de Pombal fará explodir na altura que houver por conveniente, quando se ocupar do desenvolvimento da indústria, enterrados que foram os mortos de 1755 e resolvidos alguns complexos problemas estaduais, comerciais, militares e financeiros enfrentados no reinado de D. José I. Peripatéticos e gongóricos não perdoarão o atrevimento ao «estrangeirado» eclesiástico, que ousa elogiar o teólogo Jansénius, gabar o governo de uma cidade protestante como Amesterdão e o jurista Grotius, exaltar a cultura científica da Holanda e da Inglaterra, «sem valer nada de Roma, onde o Espírito Santo nos ensina de cadeira» e preferir as edições patrísticas impressas em países de hereges. Que fazer a tão contumaz «delinquente»? Entregá-lo à Inquisição, pois claro! Só que o atrevido já tivera em 1736 o bom-senso de partir para Roma – e não mais voltaria…

Porquê tão grande cólera? De acordo com Hernâni Cidade, quatro «bons» motivos explicam a incomodidade experimentada pelas mentalidades seiscentistas (de)formadas pelos jesuítas: em primeiro lugar, o amor das verdades objectivas e o espírito crítico, que em Verney não pedem à sua crença de sacerdote católico permissão para observar os factos e esmiuçar os livros, mesmo os mais gafados de heresia, e especular sobre todos os sistemas, ao mesmo tempo que revela um indisfarçado entusiasmo por Bacon, Copérnico, Descartes, Galileu, Gassendi, Locke e Newton; depois, o autor é em teologia, filosofia, ciências, jurisprudência e literatura um espírito moderno; terceiro, «observa, lê, estuda, e a sua crítica exerce-se directamente sobre o facto, sobre o texto original ou sobre o sistema, o mais possível liberta da pressão da autoridade, o mais possível acautelada das deformações dos intermediários – tradutores ou intérpretes»; «finalmente, do ponto de vista propriamente didáctico, o mesmo espírito renovador lhe dita as páginas da mais moderna pedagogia, contra a rotina do deficiente e antipático ensino oficial».

Observa o autor que todas as actividades de Verney e de numerosos médicos, naturalistas e matemáticos se teriam perdido se não tivesse surgido Pombal, «o homem que elas suscitavam, o homem necessário que, pela omnipotência da teimosia inteligente num país abúlico, nos pusesse em larga colaboração espiritual com a Europa». Escreverá alguns anos depois Newton de Macedo: «No domínio político o inimigo era o estrangeiro, o espanhol, que importava expulsar para além fronteiras; no domínio espiritual o combate era mais árduo, pois o inimigo se abrigava no próprio âmago da consciência nacional, com ela consubstanciado sob a espécie dum tipo de mentalidade que só uma lenta e profunda renovação de ideais conseguiria modificar. Daí o sentido contrário das duas lutas a travar; sentido nacionalista no domínio político, sentido europeu na luta pela renovação dos quadros da cultura nacional.»

A reforma pombalina da Instrução (Universidade, Estudos Menores, Escola Primária) e a reforma dos estudos do clero empreendida por Frei Manuel do Cenáculo, substituindo a hegemonia da teologia especulativa pela da teologia positiva, assente na revelação e na tradição, bem como a fundação da Real Academia das Ciências, já sob D. Maria I, associadas à denúncia do barroco e ao culto do gosto pela realidade introduzidos na literatura, marcam a «revolução mental» ocorrida em Portugal no século XVIII, arejando as consciências, quebrando o isolamento deste nosso «Reino cadaveroso» (Ribeiro Sanches) e aproximando o País da Europa de Isaac Newton. Não foi pouco fértil a semente lançada à terra pelos «estrangeirados» e regada por Pombal, ainda que sejam dificilmente contestáveis as seguintes afirmações do jurista A. Ribeiro dos Santos (1745-1818): «Este ministro quis um impossível político; quis civilizar a nação e ao mesmo tempo fazê-la escrava; quis espalhar a luz das ciências filosóficas e ao mesmo tempo elevar o poder real ao despotismo; inculcou muito o estudo do Direito Natural e das Gentes e o estudo do Direito Público Universal e lhes erigiu cadeiras na Universidade; mas não via que dava luzes aos povos para conhecer por elas que o poder soberano era unicamente estabelecido para o bem comum da nação e não do príncipe, e que tinha limites e balizas em que se devia conter.»

Hernâni Cidade, «Ensaio sobre a Crise Cultural do Século XVIII», Editorial Presença, 2005 (2.ª edição), 173 páginas