António Rego Chaves/Louvor e simplificação de Frederico Nietzsche

PRÓLOGO. No dia em que esbarrei com Frederico Nietzsche, lá para o Campo de Santana, onde antes estava a «minha» Faculdade de então e eu comia bolas de Berlim enquanto devorava «Zaratustra», em vez de assistir às aulas de História do Direito Romano, que começavam logo às nove da manhã, já tinha decidido, sem retorno possível, que não seria jurista.Traduzindo, assumira o higiénico dever de não poluir o cérebro com definições elaboradas por Castro Mendes, Marcelo Caetano, Soares Martinez. E continuei a comer bolas de Berlim e a devorar «Zaratustra».

B(L)ACKGROUND. Estávamos no ano de 1958. Os meus amigos liam Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, José Duro, André Gide, Frederico Nietzsche. Subíamos e descíamos pela noite fora a Avenida da Liberdade, cantávamos à desgarrada, bebíamos cerveja Sagres – a Super-Bock era praticamente proibida em Lisboa, imaginem, não, decerto não imaginais, ó meus jovens leitores, mas é verdade – soletrávamos, já de madrugada, as quatro sílabas de Za-ra-tus-tra, que aliás só conhecíamos na suspeitíssima versão portuguesa assinada por Araújo Pereira. E repetíamos, em tom de provocação, para os guardas-nocturnos com quem nos cruzávamos: «Deus morreu, Deus está morto!» Quanto mais gritávamos, mais medo tínhamos de que fosse verdade. E vice-versa.

CENAS.

W desesperado, dividido entre o autoritarismo conservador do pai, a veneração pela suposta fragilidade da mãe. Acabou por escolher a mãe, estava-lhe no sangue, via-se logo que não poderia ser outra a saída. Mas nunca deixou de amar, ainda que muito ao longe, Zaratustra, talvez como uma recordação jamais inteiramente recuperável da sua entrada, a quente, no mundo da autenticidade.

X sempre procurando – sem dificuldades de maior –, manter a cabeça fria, longe de qualquer risco. Foi para juiz, claro. Nesta altura já deve ter passado pelo Supremo, se é que não tropeçou nalgum clube de futebol pelo caminho e foi eleito seu presidente mais ou menos honorário.

Y rosnando: «Burguesinhos de merda, de merda, de merda. Nem sabem o que é um tubérculo.» A aparente rudeza disfarçava uma sagrada transparência. Ainda é poeta.

Z silencioso. Tornou-se professor catedrático, pois então, quando decidiu falar de vez, mas sem dar azo a qualquer possibilidade de réplica. São feitios universitários…

O que falta sou eu. Outro que me encontre a «password». Aliás, a quem poderia isso interessar? Importa é que me encontro na mesma fotografia do que eles, no Terreiro do Paço, à beira do Tejo. Nem todos «vencidos da vida».

«ZARATUSTRA». Português: «Vós outros andais muito solícitos em redor do próximo, e manifestai-lo com belas palavras. Mas eu vos digo: o vosso amor ao próximo é o vosso amor a vós mesmos» (Araújo Pereira).

Francês: «Vous vous empressez auprès du prochain et vous exprimez cela par de belles paroles. Mais je vous le dis: votre amour du prochain, c’est votre mauvais amour de vous-mêmes» (Maurice Betz).

«Mauvais» a mais, «mau» a menos, quem se importa?

Retra(c)tacão: «Crede-me, meus irmãos! Jesus morreu cedo de mais! Retratar-se aí da sua doutrina se tivesse vivido até à minha idade! Era bastante nobre para se retratar» (Araújo Pereira).

«C» a mais, «c» a menos, quem se importa?

«Peço aos leitores deste livro que tenham sempre presente e que não julguem que o autor está a desculpar o pecado dum homem que foi, no mais literal sentido, um verdadeiro Anticristo» (Frederick Copleston, S. J., «Friedrich Nietzsche».

Missão cumprida, um sacerdote católico não poderia deixar de se sentir em falta por experimentar a «concupiscência» de se debruçar sobre o pensamento do ímpio autor de «Assim Falava Zaratustra». Mas Copleston a mais, Copleston a menos, quem se importa?

DISCUSSÕES. Estávamos já longe da Igreja Romana, o que talvez tivesse mais a ver com o «catolicismo real» praticado por figuras como as do Papa Pio XII, Eugénio Pacelli, ou o Cardeal Patriarca de Lisboa, Manuel Gonçalves Cerejeira, do que com o «cristianismo ideal» do Novo Testamento. Mas a verdade é que Zaratustra nos poderia surgir como uma alternativa filosófica e poética a Jesus Cristo – que não conhecíamos pela leitura directa da Bíblia, nada habitual nos meios católicos portugueses da época –, além de que as virtudes do conformismo e da submissão veiculadas pela maioria dos sacerdotes e dos crentes nos anos 50 não eram as mais apropriadas para nos aproximar do Vaticano. À nossa inquietação e ao nosso desejo de transformar o mundo, respondiam-nos invariavelmente que tudo estava bem, que um dia compreenderíamos que a nossa juventude tinha sido feliz e não poderia ter sido vivida de outra maneira. Resumindo, enganavam-nos sem pudor. Houve quem começasse pelo «Anticristo», como outros conheceram primeiro «Assim Falava Zaratustra». Ora o «Anticristo» é um livro que se poderia tornar «revoltante» para os nossos ternos e generosos corações. Como suportar frases como esta: «Os fracos e os falhados devem perecer: primeiro princípio da nossa caridade. E há mesmo que os ajudar a desaparecer. O que é mais nocivo do que todos os vícios? A compaixão da acção por todos os falhados e fracos: o cristianismo…» Por isso discutíamos sem parar Nietzsche e o nazismo, Nietzsche e o cristianismo. Mas faltavam-nos quase todos os elementos necessários para compreender o que estivera realmente em jogo na vida e obra de Nietzsche.

A «PATA». Nada sabíamos, então, de Frau Elisabeth Foerster-Nietzsche, uma «pata anti-semita e vingativa», como lhe chamou o filósofo seu irmão. A querida mana de Nietzsche prejudicara sem escrúpulos a imagem do pensador durante os seus anos de loucura e fez-lhe ainda pior depois da sua morte, em 1900. Ao contrário de Richard Wagner, Nietzsche nunca sustentou que os judeus corrompiam o «espírito alemão» e, no entanto, a mentira foi tantas vezes repetida por truculentos nacionalistas germânicos que ainda hoje constitui para muitos uma verdade incontestada. A devota Elisabeth, aliás, não lhe perdoara «Humano, demasiado Humano», livro de genial argúcia dedicado ao «ímpio» Voltaire, e no qual o cristianismo não era poupado. Depois, metodicamente, encarregara-se de assumir o controlo da obra do irmão, manipulando e censurando, do alto da sua arrogância de proprietária dos «Arquivos Nietzsche», todo o trabalho produzido pelo autor de «Ecce Homo» ainda não publicado. O culminar deste processo verificar-se-ia com a edição de «A Vontade de Poder», texto que falsificou a seu bel-prazer, bem como com a sua biografia do irmão, em que este é apresentado como nacionalista, militarista e imperialista alemão, além de ser um homem piedoso, todo ele entregue ao amor de Cristo. Maravilha das maravilhas, a racista Elisabeth Foerster-Nietzsche será proposta três vezes (1908, 1915 e 1923) para o Prémio Nobel da Literatura! E, por obra e graça da «pata anti-semita», «Assim Falava Zaratustra» vende 165 mil exemplares antes do fim da Grande Guerra e o livro chega mesmo a ser distribuído gratuitamente aos soldados que se encontram na frente de batalha, para lhes fortalecer o moral patriótico…

MUSSOLINI. Os ímpetos guerreiros de Elisabeth manifestam-se em crescendo, enlameiam Nietzsche, «colam-no» à figura grotesca do Duce: «Ele é não apenas o primeiro homem de Estado da Europa, mas do mundo inteiro. Como o meu irmão teria ficado orgulhoso de ver este homem maravilhoso, feliz, poderoso e triunfante que traz à Humanidade a esperança da salvação!» Mussolini põe em prática o pensamento filosófico de Nietzsche – eis finalmente chegado o tempo do «super-homem» de que falava Zaratustra! Verdade seja dita que o ditador italiano lhe pagava em deferências epistolares e, mesmo, em metal sonante: corresponde-se com a guardiã do templo, subsidia os «Arquivos Nietzsche». Que mais poderia desejar a estúpida traidora?

HITLER. O tempo não pára, começa a irresistível ascensão de Adolf Hitler. O Führer atribui subsídios oficiais aos «Arquivos Nietzsche», que passarão a ser administrados pelos nazis. Agora o novo ídolo da «pata» é «ariano» e chanceler do III Reich. Elisabeth jogará até ao seu último suspiro, em 9 de Novembro de 1935 – que será seguido de funerais nacionais com a presença de Hitler –, o jogo sinistro do nazismo. A propaganda nacional-socialista, sedenta de respeitabilidade intelectual, «adopta» o pretenso autor de «A Vontade Poder», faz dele o seu profeta. O «ariano» Nietzsche, «filtrado» por Elisabeth, na Filosofia e o Wagner anti-semita na Música, que geniais anunciadores de Auschwitz! Goebbels lança às chamas purificadoras ateadas pelos novos bárbaros as obras de Karl Marx, Heinrich Mann, Ernst Glaeser, Eric Kastner, Sigmund Freud, Erich Maria Remarque, Alfred Ker. E «Zaratustra» – devidamente «explicado» pelos seus intérpretes de extrema-direita – transforma-se, a par de «Mein Kampf», na «Bíblia» dos nacionais-socialistas, incluindo os «intelectuais» SA, SS, Gestapo…

LUKÁCS. Apesar de individualista, anticristão, inimigo declarado dos valores militares e do poder estatal, muitos simpatizantes do nazismo e do fascismo dos primeiros decénios do século conseguiram fazer passar Nietzsche por um apologista de todos os regimes musculados liderados pela direita. E a esquerda? A esquerda seria, após a Segunda Guerra Mundial e durante uns bons vinte anos, dominada pela desastrosa interpretação do pensamento do filósofo dada por Gyorgy Lukács na sua célebre obra, tão erudita quanto panfletária, «A Destruição da Razão». Um Nietzsche «protofascista» surge aí como o «monstro» intelectualmente responsável – devido ao seu papel de «fundador do irracionalismo do período imperialista» – pela barbárie que o nazismo pôs em prática na Alemanha e nos territórios ocupados pelas suas tropas. «Toda a obra de Nietzsche foi uma polémica contra o marxismo e o socialismo, apesar de ser evidente que ele nunca leu uma linha de Marx e de Engels», afirma o filósofo húngaro. Lukács curva-se, afinal, perante a interpretação nazi do pensamento do autor de «Zaratustra», nomeadamente a de Alfred Bauemler, prefaciador oficial dos textos reeditados na época de Hitler e apologista da tese – aliás curiosamente secundada, a partir de 1936, por Martin Heidegger –, segundo a qual «A Vontade Poder» é a «chave» da metafísica nietzschiana. A voz de um marxista como Franz Mehring ou de personalidades intelectuais da estirpe de Karl Loewith, Karl Jaspers ou Heinrich Mann é abafada pelo tom propagandístico de Gyorgy Lukács e o Nietzsche «inimigo» de Bismarck, materialista e cioso da sua liberdade crítica é sistematicamente ignorado pelo pensamento oficioso da ortodoxia comunista. A Escola de Frankfurt, no entanto, reivindicará o autor de «Zaratustra» a propósito do conceito de dialéctica do iluminismo e reconhecerá ter herdado dele o «heraclitismo» em que historicidade e niilismo estão estreitamente ligados (Gianni Vattimo).

FLASH(BACK). Regresso brevemente a W, X, Y, Z e eu.

W milita no Partido Comunista Português. Desafia as ideias e crenças familiares, tenta sintetizar no íntimo os «seus» poetas – incluindo Nietzsche – com Marx e Lenine. Em vão, claro. E, perante os camaradas, sabe que é melhor não pronunciar os nomes de Rimbaud, de Lautréamont, de Nietzsche, mesmo de Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. Vive em silêncio a afirmação (tese) e a negação (antítese), jamais atingirá a negação da negação (síntese).

X quer acabar o seu cursozinho e ganhar as suas queridas patacas em segurança: opta por se dedicar mais às sebentas jurídicas e por se deixar de veleidades nietzschianas. Sagra-se precocemente campeão do bom-senso e da má-fé. E, como seria previsível, será sempre um senhorito satisfeito.

Y escreve e é militante comunista. Vendo bem, desafia quase tudo e quase todos, porque as suas palavras publicadas incomodam demasiados literatos e políticos, sejam eles de que banda sejam. E, como seria previsível, nunca abdicará da sua condição de incorrigível intelectual – isto é, de homem que se interrogará até à morte.

Z é mais ou menos como X, mas com extensas esperanças de casa de campo e barco de recreio. À sua maneira, também está contentinho – mas com o «senão» de lhe faltar sempre qualquer coisa para ampliar os seus bens móveis ou imóveis em relação ao vizinho do lado.

Eu? Ora, quanto a mim, tudo fica dito entrelinhas, outro que encontre a «password».

COPLESTON. Sobre Nietzsche, em português (péssimo), líamos o já citado Frederick Copleston, S. J., editado pela Livraria Tavares Martins. Mas, separando o trigo do joio, dava para entender que o filósofo/não gostava da Prússia/pronunciava-se abertamente contra todos os nacionalismos «bovinos – nomeadamente o germânico – e se mostrava favorável à formação de uma Europa unida/desprezava a cultura alemã veiculada por «campónios doutos» e «amas de leite superiores»/admirava a cultura francesa (Montaigne, La Rochefoucauld, Chamfort, Fontenelle, Pascal, Voltaire, Molière, Corneille, Racine, Stendhal, etc.)/anatemizava a moral judaico-cristã do «escravo» ou do «rebanho» e advogava uma moral «aristocrática» ou do «senhor», mas a sua ideologia – ao contrário da de Richard Wagner –, nada tinha a ver com o antijudaísmo do século XIX e o futuro nazismo/considerava que devemos aos judeus «o mais nobre dos homens» (Cristo), «o mais puro dos sábios» (Espinosa), «o livro mais profundo [a Bíblia] e a mais eficiente moral do mundo»/rejeitava o sentimento de compaixão e nesse ponto poderia não se encontrar muito longe – imagine-se! – de São João da Cruz/repudiava a bondade, a amabilidade e a caridade/evidenciava uma relação de amor-ódio com a religião dominante no seu país que se manifestava, por exemplo, ao considerar que Jesus era «atraente ao mais alto grau» e que «possuía o mais generoso coração» e ao exprimir a sua admiração perante o Evangelho segundo São João, ao mesmo tempo que afirmava ser a organização eclesiástica radicalmente anticristã, o Credo uma «fútil falsidade e decepção» e São Paulo um «decadente» e um «labrego».

ACUSAÇÕES. «A Igreja é exactamente aquilo contra que pregou Jesus e contra o que ensinou os seus discípulos a lutar.»

«Não se deve confundir o cristianismo como realidade histórica com aquela das suas raízes que o seu nome recorda; as outras raízes de que brotou foram muito mais fortes. É um abuso inaudito que as degenerações e deformidades que chamam ‘Igreja cristã’, credo cristão’ e ‘vida cristã’ se adornem com esse santo nome. Que repudiou Cristo? Tudo o que hoje se chama cristão.»

«Toda a doutrina cristã é o que deve crer-se, toda a verdade cristã é puro engano e precisamente o contrário do que caracterizou os começos do movimento cristão. Precisamente o que em sentido eclesiástico é aquilo que se chama o cristão é, logo, anticristão: coisas e pessoas em vez de símbolos; história em lugar dos factos eternos; fórmulas, ritos e dogmas em vez de uma prática de vida. A indiferença absoluta em relação a dogmas, cultos, sacerdotes, igrejas e teologia – eis aqui o cristão.»

Estas palavras são de Frederico Nietzsche. Dificilmente se poderia conceber que o homem que as escreveu não tivesse um profunda ligação com um certo cristianismo, decerto não o institucionalmente consagrado, mas aquele que lhe possibilitou entender que Jesus não poderia ser pertença de qualquer ordem hierárquica constituída, romana, protestante ou ortodoxa.

PERGUNTA. Acima de qualquer outra, uma interrogação se nos impunha: liberdade, igualdade, fraternidade – nisso estávamos todos de acordo em determinada época das nossas vidas –, como conciliá-las com o pensamento de Nietzsche? Pois não era certo que o filósofo considerava «imoral» o princípio da igualdade, fosse ele enunciado pelos cristãos ou pelos socialistas? Pois não era certo que o culto do Estado – «o novo ídolo», o «monstro frio» – significava, para ele, nada mais, nada menos, do que um «retrocesso à estupidez»? Pois não era certo que em «Humano, demasiado Humano» sustentara serem «a inveja e a preguiça» a força motriz do socialismo?

Aqui, Nietzsche evidencia, na coerência da óptica aristocrática, uma das suas mais consistentes objecções à cultura judaico-cristã: é que, para o nosso autor, esta conduz directamente à Revolução Francesa e ao socialismo. E quanto ao socialismo – tal como no que se refere ao judaísmo e ao cristianismo – está tudo dito: seria a vitória da «moral dos escravos» sobre a «moral dos senhores». Todas estas afirmações, no entanto, nada têm a ver com a «raça» e o sangue, muito menos com a «superioridade» dos «arianos» alemães sobre os semitas judeus, nem mesmo com a luta de classes: o que está em jogo são os valores veiculados por uma cultura dominante na Europa em finais do século XIX e com a qual o autor da «Genealogia da Moral» se encontra em guerra aberta. Guerra de ideias, claro, não uma guerra em que as armas – fossem elas de Otto von Bismarck ou de Adolf Hitler – tivessem um papel a desempenhar. Curioso é que, a um homem que ninguém poderá acusar de ter sido um simpatizante do socialismo, não ofereça dúvidas que este vai buscar as suas raízes mais profundas, não apenas à Revolução Francesa, mas à cultura judaico-cristã. É isto que, nos anos 50 como hoje, muito poucos socialistas, cristãos e judeus estiveram ou estão dispostos a aceitar – e que, no entanto, parece dificilmente contestável por quem conheça a Bíblia, Hegel e Marx. Eis textualmente o que Nietzsche escreveu, já há mais de um século: «O Evangelho: a nova de que os pobres e humildes têm acesso à felicidade; que não é preciso senão emanciparem-se da instituição, da tradição, da tutela das classes superiores; o surgimento do cristianismo é, assim, nada mais do que a típica doutrina socialista.» (…) «A Revolução Francesa é filha e continuadora do cristianismo… o seu instinto é dirigido conta a casta, a aristocracia, os últimos privilégios.» (…) «O primitivo cristianismo é abolição do Estado.»

SUPER-HOMEM. No contexto de «Zaratustra», como encarar a ideia de um «povo eleito» donde sairá, talvez, o «super-homem»? Uma comunidade de «irmãos», uma aristocracia do espírito – não certamente de sangue –, uma «nova nobreza» portadora de «divindade» e, por isso mesmo, substituta de um Deus morto, ou, mais modestamente, um «instituto» reservado a 40 pessoas, «escola de educadores», «moderna abadia», «colónia de ideal», comunidade à maneira da imaginada por Hermann Hesse em «O Jogo das Contas de Vidro?» Jean Jaurès, no calor de uma intervenção pública, dirá que «o super-homem não é senão o proletariado», ao passo que Charles Andler considerará que Nietzsche «teria desejado uma classe operária europeia que fosse uma classe de senhores» e Georges Sorel o identificará com o capitalismo dos Estados Unidos da América. Fica bem claro que todas estas interpretações recusam a hitleriana, a qual, aliás, não é menos infundamentada do que as acima indicadas; confundir o «super-homem» com o operário treinado para desempenhar as suas tarefas especializadas na sociedade industrial ou com o seu «big-boss» texano não é menos absurdo do que tentar fazê-lo passar por um esforçado e convicto «ariano» SS sob as ordens de Henrich Himmler. Tal como Hegel, Nietzsche dará origem a discípulos de esquerda e de direita – que muito frequentemente se equivalerão no ridículo de querer atribuir aos seus respectivos mestres pensamentos que eles nunca poderiam, por coerência, ter formulado de forma implícita ou explícita. Aliás, o que estava em jogo para Nietzsche era, como decerto ninguém se atreverá hoje a contestar, o surgimento de uma elite de criadores em plena era de massificação cultural europeia. Nada mais, nada menos, do que a utópica formação de génios capazes de sintetizar «o poder de César e alma de Cristo». Modelos «realistas» mais próximos? Goethe, Beethoven, Stendhal, Heine, Napoleão, este «síntese do inumano e do sobre-humano», cuja tentativa de unificação do chamado «Velho Continente» foi reduzida a zero, na opinião do filósofo, pela inoportuna resistência da Alemanha. Quem se lembrar aqui de «colar» o «super-homem» ao nacionalismo teutónico estará longe de aflorar, sequer, um dos temas fulcrais do pensamento do autor de «Zaratustra», que é a germanofobia ou, melhor ainda, a francofilia. O supremo desprezo pelas incorrigíveis «bestas louras» bebedoras de cerveja que mais tarde inundariam de ódio a Alemanha, vitoriando o nazismo, já se encontra aqui plasmado, como um profético anátema atingindo todos aqueles que, nos anos 30, levariam Hitler ao Poder e consolidariam a sua presença como líder incontestado do III Reich. Culpar Frederico Nietzsche pelos actos desta pretensa «raça superior» teria ainda menos sentido do que responsabilizar Jesus Cristo por todas as atrocidades cometidas pelos Cruzados, pela Inquisição ou pelos que, a pretexto de espalhar a fé cristã, ampliaram, a ferro e fogo, tantas vezes com recurso à escravatura, os impérios europeus nos continentes africano, asiático e americano.

AVISO. Friedrich Nietzsche «é filósofo contra os filósofos, como é profundamente cristão contra os cristãos». A asserção pertence a José Marinho, no seu prefácio à tradução de «Ecce Homo». Um sério aviso à navegação académica portuguesa no mar das ideias, depois de ela tanto ter feito, em tempos, para arrumar o autor de «Zaratustra» na longínqua prateleira dos poetas sobre os quais é proibido fazer teses de licenciatura em Filosofia, preferindo a interpretação de Dilthey (Nietzsche filósofo-escritor) à de Heidegger (Nietzsche pensador metafísico, mesmo o último pensador da história da metafísica). Navegar à bolina, como quem «descobre» a costa ocidental africana para arrebanhar escravos, seja, mas porquê ancorar no terreno movediço do mais arbitrário dos dogmas universitários alguém que fez mais pela Filosofia contemporânea do que dez mil catedráticos lusitanos enfarpelados à moda de Augusto Comte ou do neopositivismo? Gianni Vattimo: «A Filosofia, seriamente cultivada, é necessariamente crítica das instituições, ou pelo menos produz cidadãos que não estão de facto submetidos aos objectivos do Estado; consequentemente, a única «filosofia» que se ensina nas universidades é a história das opiniões filosóficas do passado, possivelmente de modo a suscitar nos estudantes intolerância e náusea, exorcizando-a portanto de toda a função educativa no sentido da crítica existente.»

Corrigiríamos: as opiniões filosóficas do passado e as opiniões filosóficas nadas-mortas no presente…

ALEMÃES. «Creio só na cultura francesa e tenho por equívoco tudo quanto na Europa se chame cultura, para não falar da cultura alemã… Os poucos casos de alguma cultura que na Alemanha encontrei eram todos de origem francesa.»

«Nos meus mais profundos instintos, sou estranho a tudo quanto é germânico, de tal maneira que basta ter um alemão perto de mim para a digestão se me atrasar.»

«Que é que eu nunca perdoei a Wagner? Que ele condescendesse com a Alemanha, que se tornasse alemão do Império… Ali onde a Alemanha chega, corrompe a cultura.»

«Pensar como alemão, sentir como alemão, sou capaz de tudo, mas isso ultrapassa as minhas forças…»

«Não há mais mesquinho erro que o de supor que o grande êxito das armas alemãs e até a sua vitória sobre a França demonstra alguma coisa a favor da cultura alemã.»

«Os alemães recusam-se a ver claro em si próprios. Ora, sendo assim, não será legítimo propor o uso internacional da palavra alemão para designar esta depravação psicológica?»

Tudo frases de Frederico Nietzsche.

EPÍLOGO. Depois desse sublime poema em prosa cujo modelo é o Novo Testamento e a que o seu autor chamou «Assim Falava Zaratustra», ainda restava ao temerário redactor da certidão de óbito de Deus um longo calvário a percorrer. O homem que anuncia o «super-homem» sabe que é necessário mudar os homens – e sabe também que lhe faltam forças não só para levar até ao fim a missão didáctica que se impôs como para iniciar a «guerra» que lhe permitiria transformar o seu sonho em realidade. Desespera? Decerto que, a partir de 1889, já nada poderá esperar senão o dia 25 de Agosto de 1900, data em que termina a sua dolorosa agonia física e psíquica. Tinha «vencido» longos anos de filosofia socrático-platónica e judaico-cristã, «derrubara» a ideologia revolucionária do igualitarismo, esgotara-se a remover montanhas de erros crassos, de piedosas mentiras, de pretensas boas intenções: restava-lhe passar à prática, varrer os vendilhões do templo que, pedra a pedra, vinha construindo com a obra que levara a cabo – e não podia deixar de estar consciente da impotência a que estava condenado no reino de estupidez e de má-fé em que a sua vida surgira e iria desaparecer. Escrevera na «Genealogia da Moral»: «Em qualquer tempo, numa idade mais forte do que este corrupto, duvidoso presente, deverá precisamente juntar-se a nós o homem redentor, o homem do grande amor e desprezo, o espírito criador.» Dir-se-ia que Nietzsche não abandona aqui o terreno do messianismo no qual ou contra o qual, durante séculos, se movera o pensamento europeu; dir-se-ia que o seu Dioniso se confunde com Jesus, que finalmente a cultura grega pré-socrática e a cultura judaico-cristã vão ser conservadas e suprimidas, superadas pelo aparecimento do «super-homem». Eis o criador de «Zaratustra» recuperando e amplificando, como um desafio a toda a filosofia ocidental do seu tempo, as lições «pagãs» de Ésquilo e de Heraclito; eis, finalmente, o que desde o início da Idade Média era tido como impossível: a síntese «utópica» entre a cultura grega pré-socrática e a judaico-cristã. Delírio de um louco, ainda que genial? A História do século XXI apenas acaba de começar…