W. G. Sebald («Pátria Apátrida»)

A Áustria como utopia

António Rego Chaves

A evolução da Áustria, «de interminável império dos Habsburgos até diminuta república alpina, passando depois pelo Estado instituído e pelo Anschluss [anexação] para vir a integrar a funesta Grande Alemanha, até ao restabelecimento no pós-guerra», teve indeléveis reflexos na literatura. W. G. Sebald (1944-2001) ocupou-se de alguns dos seus mais ilustres responsáveis, reunindo neste volume, a que chamou «Unheimliche Heimat» (à letra, a tradução por «sinistra pátria», «medonha pátria» ou «pavorosa pátria» transmitiria com rigor a revoltada violência do título) dez ensaios acerca de ficcionistas nascidos sob a governação de Viena.

Mereceram capítulos autónomos Charles Sealsfield, Peter Altenberg, Franz Kafka, Joseph Roth, Hermann Broch, Jean Améry, Gerhard Roth e Peter Handke, mas outros autores, como Leopold Kompert, Karl Emil Franzos, David Blum e Sacher-Masoch são também alvo da atenção de Sebald. Como salienta o ensaísta, «o que mais sobressai é uma complexa ilusão, plenamente consciente da sua própria insustentabilidade, em que o trabalho sobre a ideia de pátria era entendido como exercício concomitante do exílio.» Mesmo alguém como Jean Améry, que considerava ter sobejos motivos para não voltar à Áustria, «nunca pôde superar a perda da pátria».

Esta bela obra de Sebald tem, a nosso ver – dizemo-lo com pesar – um «senão» que não devemos deixar passar em claro: o texto consagrado a Hermann Broch. Não foi por acaso, nem por capricho, que Thomas Mann considerou «A Morte de Virgílio» como «um dos livros mais essenciais» do seu tempo, nem que Hannah Arendt relevou que o seu autor «criou um poema que, na reunião do puro lirismo e do autenticamente especulativo, descobriu os elementos de uma tensão que, apenas hoje [1949] atingem a sua plena validade artística.» Procurar demolir um autor com tais qualidades sem sequer referir a existência da sua obra-prima, evocando um obscuro texto póstumo, o «Bergroman» («Romance da Montanha»), porventura controverso, mas que de modo algum fundamenta a injusta insinuação de o tomar por um nostálgico do nazismo, é algo que nos abstemos de classificar, mas que decerto não está à altura de quem nos legou «Austerlitz», «Os Emigrantes» e a «História Natural da Destruição».

Fascinante é a leitura empática que Sebald faz d’ «O Castelo», de Kafka, denunciando «a presença de um poder irracional que nada legitima» e salientado que a personagem K. acaba por reconhecer que «a diferença de poder entre a administração pública e ele é de tal monta que nem todas as manhas e mentiras de que fosse capaz poderiam estreitá-la substancialmente a seu favor.» Sublinha o ensaísta, aflorando uma «vexata quaestio» política: «O poder do castelo não é criativo, é de uma esterilidade total e esgota-se na sua perpetuação sem finalidade e sem sentido. Mantém-se vivo graças à identificação dos impotentes com o princípio da opressão. Por isso, o poder continuado do castelo é menos absoluto e mais produto de uma simbiose total que os humilhados vêm consentindo desde que a experiência da impotência se tornou para eles uma segunda natureza.»

Atentemos nesta perversa «simbiose» (a cumplicidade dos humilhados com quem os humilha) e passemos a Jean Améry. Que levava o escritor, um resistente torturado e aprisionado pelos nazis em Auschwitz, a sentir-se tão ressentido com a sua pátria, essa «coisa» de que, dizia, «quanto mais se tem, menos se necessita»? Não era tanto a Áustria que ele repudiava, eram os austríacos, ditos seus «compatriotas», o alvo da sua repulsa. Diz Sebald: «Não foi a entrada das tropas de Hitler o que destruiu a sua pátria, mas a solicitude com que o país se abriu à invasão; já deviam ter as bandeiras [com a suástica preta em fundo branco] preparadas há muito tempo.» Ao comparar o destino dos exilados classificados como «judeus» pelos nazis com o de outros expulsos da sua pátria, escrevera Améry: «A estes tiraram os haveres, casa e quintal, negócio, fortuna, ou então somente um emprego modesto, além da terra, dos prados e colinas, uma floresta, a silhueta de uma cidade ou a igreja onde foram confirmados. Nós também perdemos isso, mas perdemos ainda pessoas, colegas dos bancos de escola, vizinhos, o professor. Tinham-se tornado denunciantes ou, na melhor das hipóteses, espectadores embaraçados.» Muitos anos antes, Kafka já «previra» tudo…

Voltemos, pois, ao texto d’«O Castelo». Sebald detecta na personagem principal, «o agrimensor», um equivalente a «moshoyaj», que em hebraico quer dizer «aquele que mede». Ora, este termo provém do verbo que significa «ungir», pelo que a designação do Messias, ou seja, a palavra «Moshiayaj», significa O Ungido. Conclui o autor: «Desta coincidência deduz-se, sem lugar para dúvidas, que a dimensão messiânica constitui um nível de significado d’«O Castelo» que estava nas intenções de Kafka.»

Kafka fora inequívoco – o mesmo Kafka que, aliás, pensava que «a nossa salvação é a morte, mas não esta» – referindo-se ao «agrimensor» ou, se quisermos, ao Messias: «Não veio para trazer a felicidade a ninguém; tinha a liberdade de ajudar quem encontrasse por vontade própria, mas não devia ser saudado como portador de felicidade; quem tal fizesse, iria por mau caminho.» Esclarece Sebald: «Segundo o sentido do messianismo judaico, não se trata da libertação do indivíduo, mas da libertação da comunidade.»

Todo o alcance deste belo e pungente romance de Kafka se transfigura, convidando-nos a uma cuidadosa releitura, se seguirmos a interpretação esotérica que conduz ao Messias judaico: «K, o ‘eterno agrimensor’, como é dito uma vez no texto, é o código para um futuro utópico, perpetuamente na dianteira da actualidade, o código para a esperança de salvação inscrita na miséria e nunca resgatada. Ainda que esse princípio desapareça devido à sua própria irrealidade, resta porém a sua dinâmica moral, a pura saudade da sua realização, como ameaça real para o poder e a dominância.»

W. G. Sebald, «Pátria Apátrida», Teorema, 2010, 186 páginas