Olhar Cioran em Portugal (João Maurício Barreiros Brás)

António Rego Chaves

Passa-se hoje com a recepção de E. M. Cioran (1911-1995) em Portugal algo de semelhante ao que ocorreu com a recepção de outros grandes pensadores europeus, nomeadamente Nietzsche: acordámos tarde e, de uma maneira geral, nada inclinados a acolher ideias que contrariassem os nossos «sonos dogmáticos». A única obra de fôlego publicada acerca de Nietzsche – «O Eterno Retorno», de Raul Proença – só entre 1987 e 1994 foi editada, graças ao empenhamento de António Reis. Quanto a Cioran, este livro de João Maurício Barreiros Brás é, tanto quanto sabemos, o único trabalho de autor português que lhe foi consagrado e que está à venda nas livrarias.

Na antiga Faculdade de Letras de Lisboa, tempos não muito distantes houve em que não era permitido elaborar uma tese sobre Nietzsche, porque, para alguns enfastiados catedráticos, «não era filósofo». Não nos espantaria que, hoje, muitos pensassem o mesmo em relação a Cioran, não só porque também ele abominava as pretensões sistemáticas de Aristóteles, Tomás de Aquino ou Hegel mas, talvez e sobretudo, pela sua iconoclastia. Ambos «academicamente incorrectos» – o romeno considerava a generalidade dos filósofos «homens sem temperamento e sem história» – o seu destino imediato foi só serem lidos por quem os merecia, ou seja, gente estranha às soturnas hierarquias de universidades em evidente processo de ancilose.

Grande foi, pois, o mérito de Barreiros Brás, ao «pegar» no «insuportável» pensamento de Cioran: «insuportável», é bem certo, mas apenas na exacta medida em que a vida é «insuportável», «uma dura prova a cada instante, uma ferida incurável», como escreveu o filósofo nos «Cahiers» (póstumos) de 1957-1972. Apesar de alguns dos seus livros estarem traduzidos em Portugal («A Tentação de Existir», «História e Utopia», «Silogismos da Amargura», «Do Inconveniente de Ter Nascido»), a bibliografia passiva era, para o chamado «grande público», inexistente. Se tal «grande público» se interessará por este livro, é outro problema. Tenhamos esperança nos que ainda lêem e nos que já lêem Nietzsche e os poetas – e que perto deles tentaram ou tentam reformular a existência. Com «o pessimismo da inteligência», sem sombra de dúvida, mas também com «o optimismo da vontade», como ensinariam Romain Rolland e Antonio Gramsci.

A «questão», no que se refere a Cioran – «questão» arredada um tanto à pressa pelo autor – é a das suas opções políticas até ao fim da Segunda Guerra Mundial, isto é, a do seu notório «umbiguismo» de anticidadão. Sabe-se o que sucedeu com Heidegger, tudo é por de mais conhecido, não voltaremos ao tema; se o evocamos é porque «o caso Cioran» pode ser observado à mesma luz. Ambos, por palavras e actos, revelaram ser nazis. Terá isso repercutido nas suas obras? Está demonstrado que sim. Contudo, não se pode falar de grandes pensadores do século XX sem mencionar Heidegger e Cioran. Deteste-se, pois, tudo o que eles fizeram de detestável – mas não se hesite em admirar tudo o que escreveram de admirável.

Sustenta Barreiros Brás, referindo-se a Cioran: «Os seus textos sobre o nacionalismo romeno, alguns artigos sobre a Alemanha nazi e Hitler, são polémicos e atrozes, se não forem contextualizados na especificidade romena, e no facto de não se tratar de posições estritamente políticas». (…) «A polémica sobre as suas posições políticas ou sobre a história, a democracia, a liberdade, o progresso e a utopia serão empobrecidas, se analisadas unicamente do ponto de vista político, especialmente sob o ponto de vista do democrata do fim do século XX e início do século XXI.»

Não se deve, a nosso ver, «branquear» um nazi-fascista como Cioran – a quem se imporia contrapor intelectuais romenos de outra estirpe, que foram perseguidos e violentados, como Paul Celan ou Serge Moscovici – por obra e graça de contextos históricos ou ontologias. Os factos, até 1945, falam por si: anti-semitismo, xenofobia, fascínio pela «barbárie criadora» do nazismo, adesão à «Guarda de Ferro» da extrema-direita durante a ditadura de Ion Antonescu, ocupação de um cargo de adido da legação romena em Vichy. Que contextos históricos e que ontologias justificariam tais opções?

Resta o que aqui não se pode sequer sumariar – a interioridade de Cioran, tal como ela se revela em centenas de fragmentos e aforismos, nas obras já citadas, em «Précis de décomposition», «Sur les cimes du désespoir» ou «Le Livre des leurres». Interioridade que mergulha em Job, no Eclesiastes, Shakespeare, La Rochefoucauld, Pascal, Chamfort, Kierkegaard, Dostoievski, Schopenhauer, Nietzsche ou Kafka e que, como fez notar Fernando Savater no «Ensayo sobre Cioran», «se ocupa das coisas que não passam, não das que passam. Ou seja, da dimensão não manejável do que podemos saber: a verdade não operável, em fase terminal.»

A sua solidão foi, tanto quanto nos é dado entender, quase total, mesmo ou sobretudo em Paris, onde se fixou a partir de 1937, embora, segundo está apurado, com «escapadas» a Bucareste durante a Segunda Guerra Mundial. Adivinhamo-la: «Escrever é para mim uma terapêutica. Escrevi para me curar. O primeiro livro da minha vida, ‘Os Cumes do Desespero’, escrevi-o – em romeno, naturalmente – para não me suicidar. Quando acabei os meus estudos em Sibiu, passei por uma crise terrível. Não podia dormir. Creio que a insónia sistemática é qualquer coisa como um aperitivo do inferno.» (…) «Creio que a solidão absoluta exige a ideia de um deus. Isso não tem nada a ver com a fé. Para mim, Deus é a única forma de diálogo possível a meio da noite. É um diálogo consigo próprio que não aspira a resolver nada. É o interlocutor inexistente. É a experiência limite.» (…) «No budismo entendeu-se que a dor é o centro de tudo, por isso tudo se entendeu. É a única religião que eu aceitaria, se tivesse de aceitar alguma.»

Lede Emil (sic) Cioran. Decerto ficareis de vez desapegados de ilusões.

João Maurício Barreiros Brás, «O Pensamento Insuportável de Émile Cioran», Campo das Letras, 2006, 364 páginas