A Darwin o que é de Darwin...

António Rego Chaves

Escrevia em 1999 sobre Charles Darwin (1809-1882) o teólogo dominicano Jacques Arnould: «As caricaturas antigas, que se compraziam em dar ao digno e barbudo sábio britânico um corpo de macaco e uma propensão para trepar às árvores talvez já não continuem a ter êxito; mas os debates em torno do problema da origem da humanidade nem por isso perderam a sua virulência, até ao ponto de assim esquecerem o trabalho, talvez mais discreto, daqueles que procuram instaurar, no lugar de uma oposição tacanha ou de um concordismo devastador, um diálogo entre as diferentes formas de responder a esta procura das origens.»

Tal atitude inseria-se num já longo contexto de aproximação entre a Igreja Católica e o evolucionismo, após os anátemas lançados durante todo o século XIX, e tornara-se mais explícita em 1996, por ocasião de uma mensagem de João Paulo II, na qual o Papa recordara que já Pio XII, na encíclica «Humani Generis», tinha considerado com interesse as teorias formuladas por Lamarck e Darwin no século XIX, mas que multiplicara as advertências contra as teses que ameaçavam pôr em causa a revelação cristã. João Paulo II, no entanto, não se absteve, na mesma ocasião, de condenar «as teorias da evolução que, em função das filosofias que as inspiram, consideram o espírito como emergindo das forças da matéria viva ou como um simples epifenómeno desta matéria», reafirmando que, «se o corpo humano tem a sua origem na matéria viva que lhe pré-existe, a alma espiritual é imediatamente criada por Deus». Admitira, contudo, ser a evolução «mais do que uma hipótese», sem perder a ocasião para estatuir uma firme «delimitação de competências», segundo a qual a ciência deveria confinar-se à observação do mundo material, ao passo que a filosofia e a teologia conservariam toda a liberdade de interpretar as suas descobertas. Caberia indagarmos, a esta luz, que sentido passariam a ter dogmas como o pecado original e a Redenção…

Ao lermos a «Autobiografia» de Darwin, apenas em 1958 liberta de «piedosas» expurgações impostas por alguns dos seus mais próximos familiares, dificilmente pressentiremos a amplitude de todas as apaixonadas polémicas hoje em curso em cerca de vinte estados norte-americanos, na Austrália, em países da antiga URSS e inúmeros «sites» da Internet provocadas pelo confronto entre militantes criacionistas e os evolucionistas. O grande naturalista era, na verdade, um probo homem de ciência, sem dúvida bem mais preocupado com o rigor das investigações em que se empenhava do que com a invejosa inércia mental dos seus confrades ou as angústias existenciais de crentes e «snobs» chocados com a humilhante ideia de a sua árvore genealógica remontar a um «estúpido» macaco. O texto agora traduzido, escrito entre 1876 e 1881, está longe de ser uma exposição das teorias que o tornaram conhecido em todo o mundo. Trata-se, sim, de um auto-retrato onde o homem se nos revela com uma humildade intelectual inusitada entre aqueles que nos habituámos a considerar como os mais importantes revolucionadores das nossas concepções do homem e do universo.

Confessa que, na sua juventude, era «alarvemente ignorante em relação a assuntos de história, política e filosofia moral», ainda que fosse sensível à poesia, à pintura e à música. Em Cambridge, desenha-se definitivamente a sua vocação de naturalista: «nenhuma actividade me deu tanto prazer como coleccionar escaravelhos» – escreve.

Durante a viagem do «Beagle» (1831-1836) – «o acontecimento mais importante da minha vida» –, o seu amor pela ciência sobrepõe-se a todos os outros gostos. Recolhe material, observa-o, raciocina. Ao regressar a Inglaterra, com uma reputação de geólogo confirmada, leva inúmeras colecções de plantas, de fósseis e de animais, pondo já sérias dúvidas ao fixismo reinante. Trabalhará ainda durante mais de vinte anos para publicar «A Origem das Espécies» (1859). Mas, porque o seu espírito necessitava de repousar da aridez das investigações científicas, não dispensará a leitura de autores como Milton, Wordsworth, Coleridge, Locke, Hume ou Adam Smith.

Um dos capítulos mais interessantes da «Autobiografia», inteiramente censurado na edição original, intitula-se «Crenças Religiosas». Recordando que no «Beagle» era «perfeitamente ortodoxo» e que considerava a Bíblia como «autoridade irrefutável sobre uma qualquer questão de moral», Darwin revela que foi nessa altura que deixou de acreditar no cristianismo como revelação divina. E confessa: «A descrença pouco a pouco tomou posse de mim, com uma progressão muito lenta, até que foi total.»

Segundo o biólogo Michael Ruse, o cientista tornou-se agnóstico nos dez ou vinte últimos anos da sua vida, mas nunca ateu. «Darwin reconhecia a existência de Deus, de um Deus cuja acção se exprimia pela lei infinita do processo de selecção natural e de adaptação à mudança» – assevera. No entanto, as seguintes afirmações inseridas na «Autobiografia» levantam-nos algumas dúvidas acerca da justeza desta asserção: «Um ser tão potente e tão cheio de conhecimento como um Deus capaz de ter criado o universo é, para as nossas mentes finitas, omnipotente e omnisciente, e revolta a nossa capacidade de compreensão supor que a sua bondade não é infinita, porque qual poderá ser a vantagem do sofrimento de milhões de animais inferiores durante tempos quase infinitos? Este argumento muito antigo que parte da existência de sofrimento para refutar a existência de uma causa inicial inteligente parece-me pertinente; em contrapartida, como apontei, a presença de muito sofrimento é compatível com a ideia de que todos os seres vivos se desenvolveram através da variação e selecção natural.» Mas, adiante, acaba por concluir, sem mais explicações: «O mistério do início de todas as coisas é insolúvel para nós; e por mim contento-me em permanecer agnóstico.»

Dir-se-ia que o pensamento de Charles Darwin amplifica aqui a complexa temática do deísmo, tal como foi exposta por David Hume nos célebres «Diálogos sobre a Religião Natural»…

Charles Darwin, «Autobiografia», Relógio D’Água, 2004, 155 páginas